À flor da pele

Consuelo de Castro escreveu esta peça em 1969, há mais de 50 anos e a distância que nos separa do momento da escrita pode nos fazer pensar se é um texto que permanece atual, se vale a pena ser lido ou não.

A peça apresenta um casal, em três atos e não há dúvida de que parte dos conflitos apresentados não teriam as mesmas características, ao menos para grande parte das pessoas que vivem atualmente no Brasil e em boa parte do mundo.

A ideia de casamento foi questionada de lá para cá, o divórcio virou fato, ainda que tenha sido somente em 1977 sua aprovação, atualmente ninguém comenta de forma disfarçada o fato de uma mulher ser desquitada ou separada, como acontecia na década de 70.

Apesar das mudanças, muita coisa continua atual: um relacionamento desigual, o homem muito mais velho que a mulher, um ciúme possessivo e o medo da perda doentio.

Registro fotográfico Rodrigo Whitaker Salles

Mas para além do que a peça aborda, o que encanta é a intensidade das cenas, a dramaticidade envolvente.

Yan Michalski na Pequena enciclopédia do teatro brasileiro contemporâneo, fala sobre a autora:

Consuelo de Castro

“Representante destacada da brilhante geração de dramaturgos surgida sob a ditadura, Consuelo de Castro é, entre os autores dessa geração, talvez a que possui o corpo de obra mais volumoso e diversificado. Em comum com os outros, ela tem o sentimento de inconformismo e indignação que perpassa tudo que ela escreve. O que a distingue dos outros é a sua excepcionalmente visceral noção de teatralidade, um diálogo notavelmente colorido, que ela cria com uma espantosa espontaneidade, e uma inquietação que a faz partir sempre em busca de novos caminhos”.

Se ainda não te convenci a ler, leia o pedaço de uma cena e veja se a peça te convence:

 

 

 

 

 

 

À FLOR DA PELE

 CONSUELO DE CASTRO

 

CENÁRIO

Sala única de um apartamento. Móveis modernos e simples. Há uma aparência de completo desleixo. Quadros fora do lugar, garrafas empilhadas no chão, etc. Uma estante de livros. Uma vitrola. Acima da estante aglomeram-se posters coloridos, uma bandeira preta com os dizeres: “Seja realista; peça o impossível”. À direita, um sofá-cama aberto, com lençóis em desalinho. No centro do ambiente, uma mesa e duas cadeiras. Sobre a mesa há uma máquina de escrever, cinzeiros, jornais, livros, copos, uma caveira, tudo na mais perfeita desordem, À esquerda, um armário cheio de roupas de uso próprio e roupas de cena.

PERSONAGENS

 

VERÔNICA: A aluna. Vinte e um anos. Nostalgia da ordem.

MARCELO: O professor. Mais ou menos quarenta e três anos. Desespero   da ordem.

 

PRIMEIRO ATO

(Penumbra Verônica está só no palco, Veste um traje longo, esvoaçante e branco, seus cabelos estão soltos e cheios de flores. É uma figura muito delicada. Anda de um lado para outro, lentamente. Sua expressão é de loucura suave. Traz nas mãos um alaúde, o qual toca desafinadamente. Canta com voz rouca uma canção sem melodia: Canção de Ofélia, namorada de Hamlet, cena V, ato II – Hamlet).

VERÔNICA (Entoando) – Nunca mais o veremos?   Não mais voltará? Sumiu deste mundo,  Baixai para o fundo, Que ele não voltará.

(Ela continua repetindo alucinadamente estas frases. Desafinando com o alaúde. Às vezes rodopia leve, como fantasma)

Sumiu deste mundo,  Não mais voltará.

(Ouve-se um ruído de motor. Um carro estaciona, Ela para, assustada, acende a luz rapidamente, rói as unhas. Está apavorada com a chegada de Marcelo. Olha-se no espelho, ajeita as flores no cabelo. Faz uma careta sensual, como uma menina treinando uma pose sexy. Os passos vão se tornando próximos, ela morde os lábios).

MARCELO: (Entrando bruscamente) Oi… (Olha o traje) Ofélia de  novo? (Ela assente com a cabeça. Está muito agitada e parece uma menina envergonhada que esconde alguma coisa. Corre a beijá-lo no rosto. Ele é frio e não retribui ao beijo. Ela finge não notar a indiferença dele. Rodopia suavemente e pega o alaúde).

VERÔNICA: Estou bonita de Ofélia?

MARCELO: (Balança a cabeça. Continua com ar preocupado e indiferente). Mais ou menos…

VERÔNICA: Alguma coisa contra Ofélia, Cavalheiro? (Gentil suave).

MARCELO: Contra Ofélia? Não. (Ele deposita a capa e o guarda- chuva sobre a mesa. Parece prestes a dizer alguma coisa de muito importante. Olha para ela, que continua fazendo gestos lentos, imitando uma donzela antiga, graciosamente). Eu não vinha aqui hoje. Mas eu precisava falar com você. (Ao ouvir isto ela para com a brincadeira. Vê-se que está com medo. Rói as unhas). Suponho que a senhorita já saiba… já saiba do que se trata. Não é, Dona Verônica? (Ele ironiza e sorri, ainda muito curioso; Ela assente com a cabeça jogando os longos cabelos para frente).

VERÔNICA: (Tentando desviar o assunto de que ele ameaça falar) Depois, tá? Depois você fala, bronqueia, tudo o que quiser. (Rodopia) Fala a verdade. Não fico linda de Ofélia?

MARCELO: (Sentando-se na cama vagarosamente) Se o Shakespeare te visse… tinha um enfarte. (Som, levemente irônico, mas com um ar paternal). Você parece mais a avó da Ofélia. Está estragando a personagem. (Acende um cigarro. Ela continua rodopiando, leve e infantil).

VERÔNICA: (Recitando suavemente) Que nobre inteligência assim perdida! O olho do cortesão, a língua e o braço do sábio e do guerreiro, a mais florida esperança do Estado… O próprio exemplo de educação, o espelho da elegância…

MARCELO: (Interrompendo) Quantos litros de uísque você entornou  desde o (Ironiza) “ocorrido”?

VERÔNICA: (Parando de recitar) Eu? (Finge espanto) Eu?!

MARCELO: Você sim. Quantos litros de uísque? Vamos lá…

VERÔNICA: Nenhum… (Ri) Nenhum, imagine. Por que você pergunta isto?

MARCELO: Basta olhar para suas olheiras…

VERÔNICA: (Zombeteira ainda; olhando-se no espelho) Não estou vendo olheira nenhuma… (Olha novamente. Graciosa e irônica, começa a examinar detidamente os olhos). Nenhuma mesmo. Engraçado! (Aproxima- se dele) Onde você viu olheiras em mim? Meu Marcelo… Está vendo coisa… (Tenta seduzi-lo, aproximando o rosto bem próximo ao dele),

MARCELO: É só lavar essa maquiagem pesada e você enxerga. Lava a cara e depois vem sentar aqui, direitinho, que eu preciso conversar sério com você. Certo?

VERÔNICA: (Olhando-o assustada. Morde os lábios. Senta-se ao lado dele) Você… não vai brigar comigo, vai?

MARCELO: Não. Vou apenas colocar tudo em pratos limpos.

VERÔNICA: (Levanta-se, andando de um lado para outro, Agitada) Sei que você está uma onça. (Ri) Eu sei… Mas olha… eu… eu estava fora de   mim. Completamente fora de mim…

MARCELO: Isto não justifica nada, menina.

VERÔNICA: Eu não sabia direito o que estava fazendo.

MARCELO: Você NUNCA sabe direito o que está fazendo. VERÔNICA: Aquele dia principalmente…

MARCELO: Que é que te deu na telha de…

VERÔNICA: Não sei, não me pergunte… (Tapa o rosto, teatral). Não quero falar nisto. Eu já disse. Eu estava fora de mim.

____

Para ler o texto na íntegra, acesse aqui.

Artigos Recomendáveis