Dois perdidos numa noite suja

Montagem com Plínio Marcos

“Escrita e estreada em 1966, em São Paulo, no Bar Ponto de Encontro, transferindo-se em seguida para o Teatro de Arena, SP. Estreia no Rio de Janeiro em 1967.Na temporada no Teatro de Arena, SP, em 1967, Ademir Rocha foi substituído por Berilo Faccio. Ainda nesse ano, a mesma montagem se apresentou no Teatro da Rua (Rua Augusta, 2203, SP), como a primeira parte de um programa duplo, cuja segunda parte era Zoo Story, de Edward Albee. DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA é uma das peças mais montadas do autor. Foi também encenada na França, na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos, em Cuba, além de adaptações para  cinema.”

Esta explicação sobre a peça, assim como outras sobre a obra de Plínio Marcos pode ser vista no site www.pliniomarcos.com.

A Enciclopédia do Itaú Cultural define o autor da seguinte forma: Plínio Marcos de Barros (Santos, São Paulo, 1935 – São Paulo, São Paulo, 1999). Autor. Renovador dos padrões dramatúrgicos, através de enfoque quase naturalista que imprime aos diálogos e situações, sempre cortantes e carregados de gírias de personagens oriundas das camadas sociais periféricas, torna o palco, a partir dos anos 1960, uma feroz arena de luta entre indivíduos sob situações de subdesenvolvimento.

Esta peça é um permanente embate. Os dois personagens Tonho e Paco nos colocam perante o sofrimento da miséria que só vai se intensificando com o decorrer das cenas. A miséria apresentada por Plínio Marcos não é somente a falta de dinheiro, mas falta possibilidades, falta educação, falta sonhos, falta afeto.

O que vemos de sobra é a capacidade do autor em lidar poeticamente com este mundo para o qual pouco se quer olhar e menos ainda viver, mas um espaço que ainda permanece nos cortiços e barracos de nosso país.

Leia o começo da peça para aguçar tua vontade de continuar:

Montagem do grupo gaúcho de teatro Loucos de Palco

Um quarto de hospedaria de última categoria, onde se vêem duas camas bem velhas, caixotes improvisando cadeiras, roupas espalhadas etc.

Nas paredes estão colados recortes, fotografias de time de futebol e de mulheres nuas.

I ATO

Primeiro Quadro

(Paco está deitado em uma das camas. Toca muito mal uma gaita. De vez em quando, pára de tocar, olha para seus pés, que estão calçados com um lindo par de sapatos, completamente em desacordo com sua roupa. Com a manga dó paletó, limpa dos sapatos. Paco está tocando, entra Tonho, que não dá bola para Paco. Vai direto para sua cama, senta-se nela e, com as mãos, a examina.)

TONHO

Ei! Pára de tocar essa droga. (Paco finge que não houve.)

TONHO

(Gritando.) Não escutou o que eu disse? Pára com essa zoeira!

(Paco continua a tocar.)

TONHO

É surdo, desgraçado? (Tonho vai até Paco e o sacode pelos ombros.)

TONHO

Você não escuta a gente falar?

PACO

(Calmo.) Oi, você está aí?

TONHO

Estou aqui para dormir.

PACO

E daí? Quer que eu toque uma canção de ninar?

TONHO

Quero que você não faça barulho.

PACO

Puxa! Por que?

TONHO

Porque eu quero dormir.

PACO

Ainda é cedo.

TONHO

Mas eu já quero dormir.

PACO

Mas não vai conseguir.

TONHO

Quem disse que não?

PACO

As pulgas. Essa estrebaria está assim de pulgas.

TONHO

Disso eu sei. Agora quero que você não me perturbe.

PACO

Poxa! Mas o que você quer?

TONHO

Só quero dormir.

PACO

Então pára de berrar e dorme.

TONHO

Está bem. Mas não se meta a fazer barulho. (Tonho volta para sua cama, Paco recomeça a tocar.)

TONHO

Pára com essa música estúpida! Não entendeu que eu quero silêncio?

PACO

E daí? Você não manda.

TONHO

Quer encrenca? Vai ter! Se soprar mais uma vez essa droga, vou quebrar essa porcaria.

PACO

Estou morrendo de medo.

TONHO

Se duvida, toca esse troço. (Paco sopra a gaita, Tonho pula sobre Paco. Os dois lutam com violência. Tonho leva vantagem e tira a gaita de Paco.)

PACO

Filho-da-puta!

TONHO

Avisei, não escutou, se deu mal.

PACO

Dá essa gaita pra cá.

TONHO

Vem pegar.

PACO

Poxa! Deixa de onda e dá essa merda.

TONHO

Se tem coragem, vem pegar.

PACO

Pra que fazer força? Você vai ter que dormir mesmo.

TONHO

Antes de dormir, jogo essa merda na privada e puxo a bomba.

PACO

Se você fizer isso, eu te apago.

TONHO

Experimenta.

PACO

Se duvida, joga.

TONHO

Jogo. E daí?

PACO

Então joga.

TONHO

Você só tem boca-dura.

PACO

É melhor você me dar essa merda.

TONHO

Não enche o saco.

PACO

Anda logo. Me dá isso.

TONHO

Não vou dar. (Paco pula sobre Tonho. Esse mais uma vez leva vantagem. Joga Paco longe com um empurrão.)

TONHO

Tá vendo, palhaço? Comigo você só entra bem.

PACO

Eu quero minha gaita.

TONHO

Não tem acordo (Pausa)

(Tonho deita-se e Paco fica onde está, olhando Tonho.)

TONHO

Vai ficar aí me invocando?

PACO

Já estou invocado há muito tempo.

TONHO

Poxa! Vê se me esquece, Paco.

PACO

Então me dá a gaita.

TONHO

Você não toca?

PACO

Não vou tocar.

TONHO

Palavra?

PACO

Juro.

TONHO

Então toma. (Tonho joga a gaita na cama de Paco.) Se tocar, já sabe. Pego outra vez e quebro.

(Paco limpa a gaita e a guarda. Olha o sapato, limpa-o com a manga do paletó.)

 

 

 

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