Esta peça de Dias Gomes, escrita em 1966, continua muito mais atual do que gostaríamos!
A peça trata do julgamento de Branca pela Inquisição. Podemos acompanhar os acontecimentos desde o momento no qual Branca salva o Padre Bernardo e sua condenação final. Os conflitos vividos pelos personagens, as dúvidas provocadas pelo padre na fé tranquila de Branca são decorrente de seu desejo por ela.
A leitura deste texto vale tanto pelo contexto histórico e o conhecimento que esta trama possibilita, como pelas reflexões sobre a fé, a pureza ou a contraposição entre os dogmas e as crenças. Refletir sobre a intolerância presente na Inquisição é uma maneira de olharmos para outras demonstrações de intolerância, vividas de maneira ainda tão intensas.
Dias Gomes é bastante conhecido pela autoria da peça O Pagador de promessas, dentre muitas outras. Além de escrever para o teatro também trabalhou em rádio e foi o autor das novelas Roque Santeiro e O Bem Amado. Tem uma produção enorme, que vale a pena conhecer.
Comece agora lendo um trecho de O Santo Inquérito e continue pelo link: http://escoladacrianca.com.br/ws/wp-content/uploads/2017/03/dias-gomes-o-santo-inquerito.pdf
Primeiro Ato
O palco contêm vários praticáveis, em diferentes planos. Não constituem propriamente um cenário, mas um dispositivo para a representação, que é completado por uma rotunda. É total a escuridão no palco e na platéia. Ouve-se o ruído de soldados marchando. A princípio, dois ou três, depois quatro, cinco, um pelotão. Soa uma sirene de viatura policial, cujo volume vai aumentando, juntamente com a marcha, até chegar ao máximo. Ouvem-se vozes de comando confusas, que também crescem com os outros ruídos até chegarem a um ponto máximo de saturação, quando cessa tudo, de súbito, e acendem-se as luzes. As personagens estão todas em cena: Branca, o Padre Bernardo, Augusto Coutinho, Simão Dias, o Visitador, o Notório e os guardas.
PADRE BERNARDO: Aqui estamos, senhores, para dar início ao processo. Os que invocam os direitos do homem acabam por negar os direitos da fé e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que querem subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir. É muito fácil apresentar esta moça como um anjo de candura e a nós como bestas sanguinárias. Nós que tudo fizemos para salvá-la, para arrancar o Demônio de seu corpo. E se não conseguimos, se ela não quis separar-se dele, de Satanás, temos ou não o direito de castigá-la? Devemos deixar que continue a propagar heresias, perturbando a ordem pública e semeando os germes da anarquia, minando os alicerces da civilização que construímos, a civilização cristã? Não vamos esquecer que, se as heresias triunfassem, seríamos todos varridos! Todos! Eles não teriam conosco a piedade que reclamam de nós! E é a piedade que nos move a abrir este inquérito contra ela e a indiciá-la. Apresentaremos inúmeras provas que temos contra a acusada. Mas uma é evidente, está à vista de todos: ela está nua!
BRANCA: (Desce até o primeiro plano.) Não é verdade!
PADRE BERNARDO: Desavergonhadamente nua!
BRANCA: Vejam, senhores, vejam que não é verdade! Trago as minhas roupas, como todo o mundo. Ele é que não as enxerga! Padre sai, horrorizado.
BRANCA: Meu Deus, que hei de fazer para que vejam que estou vestida? É verdade que uma vez — numa noite de muito calor — eu fui banharme no rio… e estava nua. Mas foi uma vez. Uma vez somente e ninguém viu, nem mesmo as guriatãs que dormiam no alto dos jeribás! Será por isso que eles dizem que eu ofendi gravemente a Deus? Ora, o senhor Deus e os senhores santos têm mais o que fazer que espiar moças tomando banho altas horas da noite. Não, não é só por isso que eles me perseguem e me torturam. Eu não entendo… Eles não dizem… só acusam, acusam! E fazem perguntas, tantas perguntas!
VISITADOR: Come carne em dias de preceito?
BRANCA: Não…
VISITADOR: Mata galinhas com o cutelo?
BRANCA: Não, torcendo o pescoço.
VISITADOR: Come toicinho, lebre, coelho, polvo, arraia, aves afogadas?
BRANCA: Como…
VISITADOR: Toma banho às sextas-feiras?
BRANCA: Todos os dias…
VISITADO: sofrimento. Mas foi para que também o temêssemos e aprendêssemos a dar valor às coisas boas. Deus deve passar muito mais tempo na minha roça, entre as minhas cabras e o canavial batido pelo sol e pelo vento, do que nos corredores sombrios do Colégio dos Jesuítas. Deus deve estar onde há mais claridade, penso eu. E deve gostar de ver as criaturas livres como Ele as fez, usando e gozando essa liberdade, porque foi assim que nasceram e assim devem viver. Tudo isso que estou lhes dizendo, é na esperança de que vocês entendam… Porque eles, eles não entendem… Vão dizer que sou uma herege e que estou possuída pelo Demônio. E isso não é verdade! Não acreditem! Se o Demônio estivesse em meu corpo, não teria deixado que eu me atirasse ao rio para salvar Padre Bernardo, quando a canoa virou com ele!…
PADRE BERNARDO: (Fora de cena, gritando.) Socorro! Aqui del rei! Branca sai correndo. Volta, amparando Padre Bernardo, que caminha com dificuldade, quase desfalecido. Ela o traz até o primeiro plano e aí o deita, de costas. Debruça-se sobre ele e põe-se a jazer exercícios, movimentando seus braços e pernas, como se costuma jazer com os afogados. Vendo que ele não se reanima, cola os lábios na sua boca, aspirando e expirando, para levar o ar aos seus pulmões.
PADRE BERNARDO: (De olhos ainda cerrados, balbucia.) Jesus… Jesus, Maria, José… Ele se vai reanimando aos poucos. Abre os olhos e vê Branca, de joelhos, a seu lado.
PADRE BERNARDO: Obrigado, Senhor, obrigado por terdes atendido ao meu apelo desesperado… Não sou merecedor de tanta misericórdia. (Ele beija repetidas vezes um crucifixo que traz na mão.) Alma de Cristo, santificai-me; Corpo de Cristo, salvai-me; Sangue de Cristo, inebriaime…
BRANCA: Achava melhor o senhor deixar pra rezar depois. Agora era bom que virasse de bruços e baixasse a cabeça pra deixar sair toda essa água que engoliu. Ajudado por ela, ele vira de bruços e baixa a cabeça. Ela pressiona sua nuca, para fazer sair a água. BRANCA Se eu não chego a tempo, o senhor bebia todo o rio Paraíba…
PADRE BERNARDO: (Senta-se, meio atordoado ainda.) A minha canoa?…
BRANCA: A canoa? Seguiu emborcada, rio abaixo. Tinha alguma coisa de valor?
PADRE BERNARDO: Tinha, o cofre com as esmolas…
BRANCA: Muito dinheiro?
PADRE BERNARDO: Bastante.
BRANCA: Agora deve estar no fundo do rio.
PADRE BERNARDO: Só consegui agarrar o crucifixo; tinha de escolher, uma coisa ou outra…
BRANCA: Foi uma pena. Com o dinheiro, o senhor talvez comprasse dois crucifixos. E quem sabe ainda sobrava.
PADRE BERNARDO: Não diga isso, filha!
BRANCA: Por quê?
PADRE BERNARDO: Porque é o Cristo… Não é coisa que se compre. Tivesse eu escolhido o cofre e certamente a esta hora estaria no fundo do rio com ele. Foi Jesus quem me salvou.
BRANCA: (Timidamente.) Eu ajudei um pouco…
PADRE BERNARDO Eu sei. Você foi o instrumento. Não estou sendo ingrato. Sei que arriscou a vida para me salvar.
BRANCA: Não foi tanto assim. O rio aqui não é muito fundo e a correnteza não é lá tão forte. Quando a gente está acostumada…
PADRE BERNARDO: Acostumada?…
BRANCA: Venho banhar-me aqui todos os dias. Sei nadar e salvar alguém que está se afogando. É só puxar pelos cabelos. Com o senhor foi um pouco difícil por causa da tonsura. Tive de puxar pela batina. Me cansei um pouco, mas estou contente comigo mesma. Hoje vai ser um dia muito feliz para mim.
PADRE BERNARDO: Deus lhe conserve essa alegria e lhe faça todos os dias praticar uma boa ação, como a de hoje.
BRANCA: Não é fácil. Acho que as boas ações só valem quando não são calculadas. E Deus não deve levar em conta aqueles que praticam o bem só com a intenção de agradar-Lhe. Estou ou não estou certa?
PADRE BERNARDO: Bem…
BRANCA: Não foi querendo agradar a Deus que eu me atirei ao rio para salvá- lo. Foi porque isso me deixaria satisfeita comigo mesma. Porque era um gesto de amor ao meu semelhante. E é no amor que a gente se encontra com Deus. No amor, no prazer e na alegria de viver. (Ela nota que o Padre se mostra um pouco perturbado com as suas palavras.) Estou dizendo alguma tolice?
PADRE: No fundo, talvez não. Mas a sua maneira de falar… Quem é o seu confessor?
BRANCA: Não tenho confessor. Vivo aqui, no Engenho Velho, que é de meu pai, Simão Dias, que o senhor deve conhecer de nome. Custo a ir à cidade.
PADRE: Não vai à missa, aos domingos, ao menos?
BRANCA: Nem todos os domingos. Mas não pense que porque não vou diariamente à igreja não estou com Deus todos os dias. Faço sozinha as minhas orações, rezo todas as noites antes de dormir e nunca me esqueço de agradecer a Deus tudo o que recebo Dele.
PADRE: Gostaria de discutir com você esses assuntos. Não hoje, porque estamos ambos molhados, precisamos trocar de roupa.
BRANCA: Vamos lá em casa, o senhor tira a batina e eu ponho pra secar. Posso lhe arranjar uma roupa de meu pai, enquanto o senhor espera.
PADRE: (A proposta parece assumir para ele uns aspectos de tentação.) Não… isso não é direito…
BRANCA: Por que não?
PADRE: Já lhe dei muito trabalho por hoje. E preciso voltar o quanto antes ao colégio.
BRANCA: Que colégio?
PADRE: O Colégio dos Jesuítas. Sou o Padre Bernardo.
BRANCA: Lá aceitam moças?
PADRE: Não… só meninos, rapazes.
BRANCA: Por que nunca aceitam moças nos colégios?
PADRE: Porque moças não precisam estudar.
BRANCA: Nem mesmo ler e escrever?
PADRE: Isso se aprende em casa, quando se quer e os pais consentem.
BRANCA: (Com certo orgulho.) Eu aprendi. Sei ler e escrever. E Augusto diz que faço ambas as coisas melhor do que qualquer escrivão de ofício.
PADRE: Quem é Augusto?
BRANCA: Meu noivo. Foi ele quem me ensinou. Mas foi preciso que eu insistisse muito e quase brigasse com meu pai. É tão bom.
PADRE: Ler?
BRANCA: Sim. Sabe as coisas que mais me divertem? Ler estórias e acompanhar procissão de formigas. (O Padre ri.) Sério. Tanto nos livros como nas formigas a gente descobre o mundo. (Ri.) Quando eu era menina, conhecia todos os formigueiros do engenho. O capataz botava veneno na boca dos buracos e eu saía de noite, de panela em panela, limpando tudo. Depois ia dormir satisfeita por ter salvo milhares de vidas. O Padre espirra.
BRANCA: Oh, mas o senhor com essa roupa molhada no corpo e eu aqui contando estórias. O senhor me desculpe…
PADRE: Não tenho de que desculpá-la, tenho que lhe agradecer, isto sim. Gostaria muito de continuar a ouvir as suas estórias. Todas, todas as estórias que você tiver para me contar.
BRANCA: Pois venha, venha nos visitar lá no engenho. Eu me chamo Branca. Ela beija a mão que ele lhe estende.
PADRE: Branca… você é um dos tesouros do Senhor. Preciso cuidar de você. (Sai.)