O Rei da Vela foi escrito em 1933 e encenada pela primeira vez em 1967, com montagem dirigida por José Celso Martinez Corrêa, que a remontou agora, em comemoração aos 50 anos da primeira encenação.
Escrita por Oswald de Andrade, a peça é uma crítica à sociedade e à política de um Brasil que vivia a crise do café e as consequências do crack de 1929 da Bolsa de Nova York. Nela observamos a forma pela qual o sistema de agiotagem permite o enriquecimento de alguns em detrimento dos muitos que se tornam dependentes.
Estruturada em três atos, tendo como personagens centrais Abelardo I, Abelardo II e Heloísa é possível acompanhar a maneira pela qual as questões apresentadas continuam atuais. No Brasil que vivemos hoje é possível observar a crítica feita por Oswald de Andrade sobre a maneira pela qual o poder e o dinheiro se mantém nas mãos de poucos. Crítica que poderia ser feita aos mecanismos da política atual, ainda que estejamos a quase 100 anos do momento no qual foi escrita.
O questionamento sobre a moralidade e sexualidade também são aspectos significativos deste texto.
A ruptura com a ilusão teatral, evidente na fala de Abelardo I quando conversa com o ponto, ou mesmo em suas referências ao fato de ser uma peça teatral, nos apresenta a ousadia do autor nesta proposta estética.
Para que a tua vontade de ler aumente, segue um pequeno trecho, desta que é uma das mais importantes obras da dramaturgia brasileira.
O Rei da Vela – trecho do primeiro ato
Heloísa (mostrando a Gioconda) – Por que que você tem esse quadro aí…
Abelardo I – A Giocondo… Um naco de pobreza. O primeiro sorriso burguês…
Heloísa – Você é realista. E por isso enriqueceu magicamente. Enquanto os meus pais, lavradores de cem anos, empobreceram em dois…
Abelardo I – Trabalharam e fizeram trabalhar para mim milhares de seres durante noventa e oito… (Silêncio absoluto).
Heloísa – Dizem tanta coisa de você, Abelardo…
Abelardo I – Já sei… Os degraus do crime… que desci corajosamente. Sob o silêncio comprado dos jornais e a cegueira da justiça da minha classe! Os espectros do passado… Os homens que traí e assassinei. As mulheres que deixei. Os suicidados… O contrabando e a pilhagem… Todo o arsenal do teatro moralistas dos nossos avós. Nada disso me impressiona nem impressiona mais o público… A chave milagrosa da fortuna, uma chave yale… Jogo com ela!
Heloísa – O pânico…
Abelardo I – Por que não? O pânico do café. Com dinheiro inglês comprei café na porta das fazendas desesperadas. De posse de segredos governamentais, joguei duro e certo no café-papel! Amontoei ruínas de um lado e ouro do outro! Mas, há o trabalho construtivo, a indústria… Calculei ante a regressão parcial que a crise provocou… Descobri e incentivei a regressão, à volta a vela… sob o signo do capital americano.
Heloísa – Ficaste o Rei da Vela!
Abelardo I – Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O Rei da vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança pensando nas histórias das negras velhas… Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas em casa… As empresas elétricas fecharam com a crise… Ninguém mais pode pagar o preço da luz… A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu produzo de todos os tamanhos e cores. (Indica o mostruário). Para o Mês de Maria, para as cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende e se joga à noite, para a hora de estudo das crianças, para os contrabandistas no mar, mas a grande vela é à vela da agonia, aquela pequena velhinha de sebo que espalhei para o Brasil inteiro… Num país medieval como nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional!
Heloísa (Sonhando) – Meu pai era o Coronel Belarmino que tinha sete fazendas, aquela casa suntuosa de Higienópolis… ações, automóveis… Duas filhas viciadas, dois filhos tarados… Ficou morando na nossa casinha de Penha e indo à missa pedir a Deus a solução que os governos não deram…
Abelardo I – Que não deram aos que não podem viver sem empréstimos.
Heloísa – Meus pais… meus tios… meus primos…
Abelardo I – Os velhos senhores da terra que tinham que dar lugar aos novos senhores da terra!
Heloísa – No entanto, todos dizem que acabou a época dos senhores e dos latifúndios…
Abelardo I – Você sabe que o meu caso prova o contrário. Ainda não tenho o número de fazendas que seu pai tinha, mas já possuo uma área cultivada maior que a que ele teve no apogeu.
Heloísa – Há dez anos… A saca de café a duzentos mil-réis!
Abelardo I – Estamos de fato num ponto crítico em que podem predominar, aparentemente e em número, as pequenas lavouras. Mas nunca como potência financeira. Dentro do capitalismo, a pequena propriedade seguirá o destino da ação isolada nas sociedades anônimas. O possuidor de uma é mito econômico. Senhora minha noiva, a concentração do capital é um fenômeno que eu apalpo com as minhas mãos. Sob a lei da concorrência, os fortes comerão sempre os fracos. Desse modo é que desde já os latifúndios paulistas se reconstituem sob novos proprietários.
Heloísa – Formidável trabalho o seu!
Abelardo I – Não faça ironia com a sua própria felicidade! Nós dois sabemos que milhares de trabalhadores lutam de sol a sol para nos dar farra e conforto. Com a enxada nas mãos calosas e sujas. Mas eu tenho tanta culpa disso como o papa-níqueis bem colocado que se enche diariamente de moedas. É assim a sociedade em que vivemos. O regime capitalista que Deus guarde…
Heloísa – E você não teme nada?
Abelardo I – Os ingleses e americanos temem por nós. Estamos ligados ao destino deles. Devemos tudo, o que temos e o que não temos. Hipotecamos palmeiras… quedas d’água. Cardeais!
Heloísa – Eu li num jornal que devemos só a Inglaterra trezentos milhões de libras, mas só chegaram aqui trinta milhões…
Abelardo I – É provável! Mas compromisso é compromisso! Os países inferiores têm que trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para os ricos. Você acredita que New York teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil pernas mais bonitas da Terra se não se trabalhasse para Wall Street de Ribeirão Preto a Cingapura, de Manaus a Libéria? Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! Mas não me queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você…
(*) Do livro O Rei da Vela (1933). São Paulo, Editora Globo, 2003