Seis personagens à procura de um autor

Algumas peças merecem ser lidas apenas pelo que representam na literatura teatral, essa é uma delas. Se este motivo não lhe convence, você pode fazer a leitura desta obra de Luigi Pirandello por saber que este autor escreveu, em 1921, uma peça que abordou questões sobre o sentido de encenar e sobre a relação entre realidade e representação que permanecem relevantes até hoje.

Mas se nada disso lhe convence, afinal o seu interesse por teatro não é tanto assim, leia porque é um texto delicioso!

Em meio a um ensaio chegam seis personagens que começam a contar sobre suas vidas, sobre o drama vivido por eles, as implicações das escolhas que levaram uma família — mais estranha na época do que hoje, mas nem por isso menos angustiante — a viver uma situação bastante difícil.

Nos envolvemos com a narrativa assim como o diretor da peça, porém, é justamente no momento que ela começa a ser encenada que vemos a principal discussão proposta pelo autor, isto é, a questão sobre a veracidade da cena evocada a partir dos conflitos que surgem entre personagens e atores.

Leia um pedaço da peça e se quiser ler todo o texto acesse em: http://joinville.ifsc.edu.br/~luciana.cesconetto/Textos%20teatrais/DRAMATURGIAS/PIRANDELLO-%20Seis%20personagens….pdf

Luigi Pirandello, disponível em http://www.livroscotovia.pt/autores/detalhes.php?id=45

TRECHO DA PEÇA SEIS PERSONAGENS À PROCURA DE UM AUTOR

O PAI – Mas, se todo o mal está nisto!… Nas palavras. Todos trazemos dentro de nós um mundo de coisas: cada qual tem o seu mundo de coisas! E como podemos entender-nos, senhor, se, nas palavras que digo, ponho o sentido e o valor das coisas como são dentro de mim, enquanto quem as ouve lhes dá, inevitavelmente, o sentido e o valor que elas têm para ele, no mundo que traz consigo? Pensamos entender-nos… e jamais nos entendemos! Veja: a minha compaixão, toda a minha compaixão por esta criatura (indica a Mãe.), ela considerou a mais feroz das crueldades!…

A MÃE – Mas se você me expulsou!

O PAI – Vê? Está ouvindo? Diz que a expulsei. Acha que a expulsei!

A MÃE – Você sabe falar: eu não sei… Mas, acredite senhor, que, depois de se ter casado comigo… quem sabe por quê!… – (eu era uma pobre mulher, humilde…).

O PAI – Justamente por isso! Casei-me pela sua humildade, o que eu amava em você, julgando… (Interrompe-se diante das negações dela. Abre os braços, desesperado pela impossibilidade de fazer-se compreender. Dirigindo-se ao Diretor.) Está vendo? Diz que não! É espantosa, senhor – acredite -, é espantosa a sua surdez (bate na testa.), a sua surdez mental! Coração tem, para os filhos! Mas surda: surda de cérebro, surda, senhor, até ao desespero!

A ENTEADA – É, mas pergunte-lhe agora que sorte nos trouxe a sua inteligência!…

O PAI – Se nos fosse dado prever todo o mal que pode nascer do bem que pensamos fazer!… (Nesta altura, a Primeira Atriz, aborrecida por ver o Primeiro Ato namorar a Enteada, vem ao Diretor e pergunta.).

A PRIMEIRA ATRIZ – Com licença, Senhor Diretor: o ensaio vai continuar?

O DIRETOR – Vai, sim, vai. Mas agora me deixe ouvir.

O GALÃ – É um caso tão novo!

A INGÊNUA – Interessantíssimo!

A PRIMEIRA ATRIZ (Dando uma olhadela ao Primeiro Ator) – Para quem se interessa por ele…

O DIRETOR (Ao Pai) – Mas é preciso que o senhor se explique claramente! (Senta-se.).

O PAI – Pois não! Veja senhor: eu tinha um subalterno, meu secretário, um pobre homem, devotadíssimo, que andava, em tudo e por tudo, de acordo com ela (indica a Mãe.), sem sombra de mal — note bem! — um homem bom, humilde e tão incapaz quanto ela — já não digo de fazer, mas de pensar no mal!…

A ENTEADA – E, em vista disso, ele o pensou, por eles — e o fez!

O PAI – Não é verdade! Pensei fazer o bem deles e também o meu, confesso! Meu senhor: tinha chegado ao ponto em que não podia dizer uma palavra a um ou a outro, sem que imediatamente trocassem um olhar de compreensão, sem que ela procurasse logo os olhos do outro para aconselhar-se, para saber como devia interpretar aquela minha palavra, para não irritar-me. Bastava isso — o senhor bem pode compreender — para manter-me numa raiva contínua, num estado de exasperação intolerável!…

O DIRETOR – Uma pergunta: por que não mandava embora o seu secretário?

O PAI – Foi o que fiz. Mandei-o embora. Mas vi então esta pobre mulher andar pela casa como perdida, como um animal sem dono que a gente recolhe por pena.

A MÃE – Pudera!

O PAI (Volta-se para ela, como que para lhe antecipar-se, rápido) – O Filho, não é?

A MÃE – Primeiro, tinha-me tirado o Filho do peito, senhor!

O PAI – Mas não foi por crueldade! Foi para fazê-lo crescer sadio e robusto, ao contato da terra!

A ENTEADA (Indicando o Filho, irônica) – Vê-se!…

O PAI (Rápido) – E é também culpa minha, se depois ficou assim? Entreguei-o a uma ama-de-leite, fora da cidade, a uma camponesa, porque ela não me parecia bastante forte para amamentá-lo, apesar de ser de origem humilde. Foi por esta mesma razão que me casei com ela. Sempre ouvi dizer que as pessoas de nascimento modesto são mais fortes e sadias… Crendices!… Mas que havemos de fazer? Sempre tive destas malditas aspirações a uma sólida sanidade moral!… (A Enteada, neste ponto, solta nova e radiosa gargalhada. O Pai dirige-se ao Diretor.) Faça-a calar! É insuportável!

Foto de Fredi Kleemann da montagem de 1951, disponível em http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra60179/seis-personagens-a-procura-de-um-autor

O DIRETOR – Cale-se! Deixe-me ouvir, Santo Deus!… (Com a repreensão do Diretor, a Enteada interrompe a gargalhada em meio e fica de novo absorta e longínqua. O Diretor desce à plateia para ter a impressão da cena.).

O PAI – Não pude mais ver esta mulher (indica a Mãe.) junto a mim. Não tanto pelo aborrecimento, pela opressão — verdadeira opressão — que me dava, quanto pela pena — uma pena angustiosa — que sentia por ela.

A MÃE – E mandou-me embora!

 

Arena conta Tiradentes

Peça escrita por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, em 1967, que irá abordar o tema da Inconfidência Mineira relacionando-o aos acontecimentos políticos da década de 1960. Boal é um autor que precisa ser conhecido por qualquer um que se interesse por teatro. Além de suas obras como dramaturgo, escreveu sobre teoria teatral e dirigiu diferentes grupos e experimentos importantíssimos para o teatro.

Esta peça apresenta com mais clareza o Sistema Coringa, já experimentado em “Arena Conta Zumbi”.

Sobre o Sistema Coringa, você pode conhecer um pouco mais no link http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo620/sistema-coringa ou nos próximos posts deste blog.

Sobre o Teatro de Arena, Sabato Magaldi  escreve “Um palco brasileiro: o Arena de São Paulo”, no qual é possível saber muito sobre a formação deste grupo que soube fazer do teatro um espaço de reflexão acerca do momento político e social vivido naquela época.

A leitura desta peça mostrará o quanto persistem alguns dos problemas enfrentados há 50 anos. É possível que, ao ler, você tenha a sensação de que foi uma criação que antecipou o que estava por vir, mas basta conhecer um pouco da história deste país para sabermos que as relações estabelecidas entre a Inconfidência Mineira e o Golpe de 1964 parecem estar em uma sala de espelhos, nos quais voltamos a ver, atualmente, as mesmas imagens refletidas.

Leia um trecho da peça aqui no post e se quiser ler um pouco mais, acesse:

https://ensinarhistoriajoelza.com.br/download-arena-conta-tiradentes-o-teatro-politico/

FANFARRAS

CORIFEU – Vila Rica, Palácio do Governo, 1788. Sai Cunha Menezes, Barbacena toma posse! Todo mundo alegre! Alegria dura pouco.

 GONZAGA – Nós e o povo já dávamos sinais de grande inquietação! Nós e o povo estamos felizes com a nomeação de V.Ex.a.! Vossa vinda traz de volta a paz e o retorno!

BARBACENA – Mais que retorno, mais que a paz, trago alegria, apesar de tudo. Trago esta carta da Rainha que me ordena lançar a derrama. Que todos sejam felizes, apesar de tudo. O Brasil finalmente honrará suas dívidas a Portugal! A derrama será lançada! (Pânico. Espanto profundo. Música de percussão.)

GONZAGA – Mas, Ex.a.! São nove milhões de cruzados. Nem a Capitania inteira possui essa fortuna disponível!

DOMINGOS – Nem que eu venda todas minhas fábricas!

SILVÉRIO – Nem que eu venda meus escravos! Nem que eu me venda a mim!

FRANCISCO – Nem que eu venda meu exército com todas suas armas, uniformes e disciplina!

GONZAGA – A mim me parece estranho que a Capitania tenha contraído uma dívida superior aos bens de que dispõe!

BARBACENA (irônica e sarcástico) – No entanto, assim é. O Governo anterior levou a este paradoxo. Aqui, fizeram-se fortunas individuais, e o povo encontrou trabalho. Mas tudo isso a custa de quê? A custa do nosso bom nome no exterior, do nosso crédito, da nossa honra colonial. A Coroa nada lucrou com esse desenvolvimento. E o Brasil é como um trem atrasado, um trem abarrotado de riquezas que, todavia, caminha com extrema lentidão. Não deve ser assim, o trem deve andar mais depressa, e seu movimento será fornecido por trabalho, trabalho, trabalho! E o seu destino será a Coroa, Coroa, Coroa, Coroa! Fala-se mal da Coroa, porém nós sabemos que todos nossos males têm uma só origem e esta como todos sabem se constitui apenas de uma série de contingências. Digo mais: diversas contingências, a maioria das quais originadas no governo passado. Mas nós venceremos, venceremos na medida em que cada um criticar menos e trabalhar mais. Pelo trabalho superaremos ressentimentos e venceremos ódios — ódios tão pouco inerentes à nossa índole generosa! Só vos peço isto: digam comigo — Confiamos no Brasil! Apostamos no Brasil! Critique menos e trabalhe mais!

TODOS EM CORO – Confiamos no Brasil! Apostamos no Brasil! Critique menos e trabalhe mais!

CORO (Marcha Rancho)

Calado, trabalhe mais!

Se o governo é bom ou mal,

Vamos todos melhorar:

Dê seu ouro a Portugal.

Existem muitas colônias,

Que se tornam mais florentes,

Quando pagam suas dívidas

E à Coroa são tementes.

Trabalhe sem entender,

Dê dinheiro e seja ousado.

Pagando somos felizes,

Num País escravizado.

Num País escravizado.

Num País escravizado.

EXPLICAÇÃO 2 CORINGA (em todas as “Explicações” o Coringa é o ator que o interpreta e não um personagem) – Vocês devem estar estranhando quatro coisas. Espero que sejam só quatro porque essas eu posso explicar. Primeiro, as Pilotas. Aposto que vocês ficaram todos na dúvida se elas eram só costureiras ou só prostitutas. Não eram nem só uma coisa nem só outra. Eram as duas coisas ao mesmo tempo. Naquela época não havia especialização. Segundo, a história de desviar o Rio. Tiradentes tinha o projeto de canalizar os rios Andaraí e Maracanã, coisa que na época todos achavam ficção científica. Ele chegou a ser vaiado um dia na ópera por causa disso. Mas veio D. João VI e esse projeto foi executado e até hoje é conhecido como o “Canal do Mangue”. As fiéis Pilotas continuam lá, mas agora totalmente especializadas. Terceiro, por que a troca de Cunha Menezes por Barbacena? Porque à Rainha só interessava um governador das Minas Gerais que fosse fiel, honesto e austero, porque só assim podia ter certeza de que o nosso ouro seria fiel, honesta e austeramente embarcado para Portugal. Quarto, a derrama! Como bom país colonizador, Portugal cobrava imposto sobre tudo. Importação, exportação, escravo, boi, vaca, terra, casa, cabeça… Nasceu príncipe, a colônia paga imposto.  Morreu, paga! Batizou, crismou, fez primeira comunhão, casou, separou, recasou — paga! O príncipe sorriu, paga imposto! Mas mesmo somando tudo isso, D. Maria ainda achava pouco, e lá vinha a Derrama, com soldado na porta, pra cobrir a diferença. Não escapava ninguém, fosse mineiro ou não! O Governo decidia quanto é que cada um tinha de dar e podia reduzir à pobreza quem horas antes fora um potentado. Era o Terror. A revolta era a única solução. (…)

OBS: As fotos deste post são de Derly Marques e estão disponíveis em http://enciclopedia.itaucultural.org.br

Dias Felizes

Extenso gramado crestado, elevando-se ao centro em pequena colina. Cai em inclinação suave para os dois lados e para a frente do palco. Para trás, queda mais abrupta, até o nível do palco. Máxima simplicidade e simetria.

Luz ofuscante.

Pano de fundo em trompe-l’œil convencional, representando o encontro ao longe de uma planície vazia e um céu idem.

Enterrada até a cintura, precisamente no centro da colina, WINNIE. Na casa dos cinquenta, bem conservada, loira de preferência, um pouco acima do peso, braços e ombros nus, decote amplo, seios fartos, colar de pérolas. Ela dorme, os braços apoiados na terra à sua frente, a cabeça sobre os braços. Ao seu lado, à esquerda, uma grande bolsa preta, estilo sacola de compras, e à sua direita uma sombrinha dobrável, dobrada, da qual só se vê o cabo emergindo da colina.

À sua direita e atrás, dormindo sobre a terra, escondido pela colina, WILLIE.”

Desta forma começa a peça Dias Felizes de Samuel Beckett.

Beckett nasceu no começo do século XX e viveu quase até seu fim. Foi um dos dramaturgos mais influentes deste período, sendo um dos principais representantes do Teatro do Absurdo. Também é autor de Esperando Godot, dentre outras peças, além de contos, ensaios e poesia.

Dias Felizes com Fernanda Montenegro e Fernando Torres, disponível em http://www.gazetadopovo.com.br

Laura Carla Franchi dos Santos nos fala sobre esta peça: “Dias Felizes, de 1961, trata-se de uma peça longa, concebida em dois atos, onde a protagonista Winnie encontra-se enterrada por um monte de terra e, portanto, não se locomove pelo espaço. No primeiro ato Winnie está enterrada até a cintura, o que lhe garante a gesticulação, a manipulação de objetos e a execução de um longo monólogo com a plateia. No segundo ato ela encontra-se enterrada até o pescoço, restando-lhe a fala e a movimentação com os olhos. Se no primeiro ato assistimos a ações inúteis desta mulher que a desvia da percepção do tempo, no segundo ato teremos apenas a voz desta mesma mulher. Com a passagem do tempo, imagina-se que Winnie será devorada pela terra, que suas palavras serão devoradas, assim como seus gestos um dia foram devorados: Eu mesma não acabarei por me derreter, ou queimar, não, não estou dizendo necessariamente em chamas, não, somente reduzida, pouco a pouco, a uma cinza negra, toda essa… (amplo gesto dos braços)… carne visível

Conheci este texto assistindo a montagem com Fernanda Montenegro e Fernando Torres. O absurdo da cena nos fala das muitas situações absurdas nas quais vivemos. Vale a leitura!

Auto da Barca do Inferno

Este texto é conhecido de muitos, afinal é um dos textos cobrados no vestibular faz tempo e por isso lido por muitos, ao menos seu resumo!

Gil Vicente nasceu em Portugal, não se sabe bem em qual cidade e tampouco em que ano, mas estima-se que viveu entre 1465 e 1537, isto é, estava vivo na época em que as barcas chegaram ao Brasil. Seriam estas barcas do inferno? Caso você queira saber mais sobre ele não faltarão fontes e pesquisas sobre o tema. A introdução de Segismundo Spina , publicada pela Ateliê Editorial fornece uma boa visão sobre este autor.

Neste Auto podemos observar os diferentes personagens que ao morrer irão chegar a um porto onde há duas embarcações: uma é chefiada pelo Anjo, que conduz ao paraíso; a outra, comandada pelo Diabo e seu Companheiro, vai para o inferno. Os personagens se apresentam diante do espectador como em um desfile, ao fim do qual cada um terá de enfrentar seu destino.

Esses personagens não representam indivíduos definidos, mas, sim, tipos sociais. A escolha dos tipos faz referência à época vivida, mas não há dúvida das muitas relações possíveis a serem estabelecidas com a atualidade. Spina ao comentar a obra diz: “O cômico do auto resulta, não do inesperado das situações ou da modificação do automatismo, mas tão somente da caracterização estilística das diferentes personagens, cujo comportamento é um retrato vivo de sua realidade terrena, e a beleza da peça reside, portanto, no realismo dessa caracterização das personagens, intimamente vinculadas à realidade material e à sua condição linguística.”

Leia neste post a conversa entre o Diabo e o Sapateiro e depois continue lendo toda a peça! Com quem será que você se identificará? E em qual barca entrará?

Foto do espetáculo realizado pelo grupo “A Barca”, disponível em https://www.jornalnopalco.com.br/2016/09/17/espetaculo-o-auto-da-barca-do-inferno-fara-temporada-em-gramado/

Trecho do Auto da Barca do Inferno:

Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas, e chega ao batel infernal, e diz:

Sapateiro — Hou da barca!

Diabo — Quem vem i?

Santo sapateiro honrado, como vens tão carregado?…

Sapateiro — Mandaram-me vir assim…

 

E para onde é a viagem?

Diabo — Para o lago dos danados.

Sapateiro — Os que morrem confessados onde têm sua passagem?

Diabo — Nom cures de mais linguagem!

Esta é a tua barca, esta!

Sapateiro — Renegaria eu da festa e da puta da barcagem! Como poderá isso ser, confessado e comungado?!…

Diabo — Tu morreste excomungado:

Nom o quiseste dizer.

Esperavas de viver, calaste dous mil enganos…

Tu roubaste bem trint’anos o povo com teu mester. Embarca, era má para ti, que há já muito que t’espero!

Sapateiro — Pois digo-te que nom quero!

Diabo — Que te pês, hás de ir, si, si!

Sapateiro — Quantas missas eu ouvi, nom me hão elas de prestar?

Diabo — Ouvir missa, então roubar, é caminho per’aqui.

Sapateiro — E as ofertas que darão?

E as horas dos finados?

Diabo — E os dinheiros mal levados, que foi da satisfação?

Sapateiro — Ah! Nom praza ò cordovão, nem à puta da badana, se é esta boa traquitana em que se vê Jan Antão!

Ora juro a Deus que é graça!

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

Hou da santa caravela, poderês levar-me nela?

Anjo — A carrega t’embaraça.

Sapateiro — Nom há mercê que me Deus faça?

Isto sequer irá.

Anjo — Essa barca que lá está Leva quem rouba de praça. Oh! almas embaraçadas!

Sapateiro — Ora eu me maravilho haverdes por grão peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir chantadas num cantinho desse leito!

Anjo — Se tu viveras direito,

Elas foram cá escusadas.

Sapateiro — Assim que determinais que vá cozer ò Inferno?

Anjo — Escrito estás no caderno das ementas infernais.

Torna-se à barca dos danados, e diz:

Sapateiro — Hou barqueiros! Que aguardais?

Vamos, venha a prancha logo e levai-me àquele fogo! Não nos detenhamos mais!

Vem um Frade com uma Moça pela mão, e um broquel e uma espada na outra, e um casco debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:

Quer ler mais, acesse o link: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua00111a.pdf

O Rei da Vela

O Rei da Vela foi escrito em 1933 e encenada pela primeira vez em 1967, com montagem dirigida por José Celso Martinez Corrêa, que a remontou agora, em comemoração aos 50 anos da primeira encenação.

Escrita por Oswald de Andrade, a peça é uma crítica à sociedade e à política de um Brasil que vivia a crise do café e as consequências do crack de 1929 da Bolsa de Nova York. Nela observamos a forma pela qual o sistema de agiotagem permite o enriquecimento de alguns  em detrimento dos muitos que se tornam dependentes.

Dina Sfat em montagem de 1967. Foto de Fredi Kleemann

Estruturada em três atos, tendo como personagens centrais Abelardo I, Abelardo II e Heloísa é possível acompanhar a maneira pela qual as questões apresentadas continuam atuais. No Brasil que vivemos hoje é possível observar a crítica feita por Oswald de Andrade sobre a maneira pela qual o poder e o dinheiro se mantém nas mãos de poucos. Crítica que poderia ser feita aos mecanismos da política atual, ainda que estejamos a quase 100 anos do momento no qual foi escrita.

O questionamento sobre a moralidade e sexualidade também são aspectos significativos deste texto.

A ruptura com a ilusão teatral, evidente na fala de Abelardo I quando conversa com o ponto, ou mesmo em suas referências ao fato de ser uma peça teatral, nos apresenta a ousadia do autor nesta proposta estética.

Para que a tua vontade de ler aumente, segue um pequeno trecho, desta que é uma das mais importantes obras da dramaturgia brasileira.

Cartaz de divulgação da montagem de 2017, dirigida por José Celso Martinez Correa

O Rei da Vela – trecho do primeiro ato

Heloísa (mostrando a Gioconda) – Por que que você tem esse quadro aí…

Abelardo I – A Giocondo… Um naco de pobreza. O primeiro sorriso burguês…

Heloísa – Você é realista. E por isso enriqueceu magicamente. Enquanto os meus pais, lavradores de cem anos, empobreceram em dois…

Abelardo I – Trabalharam e fizeram trabalhar para mim milhares de seres durante noventa e oito… (Silêncio absoluto).

Heloísa – Dizem tanta coisa de você, Abelardo…
Abelardo I – Já sei… Os degraus do crime… que desci corajosamente. Sob o silêncio comprado dos jornais e a cegueira da justiça da minha classe! Os espectros do passado… Os homens que traí e assassinei. As mulheres que deixei. Os suicidados… O contrabando e a pilhagem… Todo o arsenal do teatro moralistas dos nossos avós. Nada disso me impressiona nem impressiona mais o público… A chave milagrosa da fortuna, uma chave yale… Jogo com ela!

Heloísa – O pânico…

Abelardo I – Por que não? O pânico do café. Com dinheiro inglês comprei café na porta das fazendas desesperadas. De posse de segredos governamentais, joguei duro e certo no café-papel! Amontoei ruínas de um lado e ouro do outro! Mas, há o trabalho construtivo, a indústria… Calculei ante a regressão parcial que a crise provocou… Descobri e incentivei a regressão, à volta a vela… sob o signo do capital americano.

Heloísa – Ficaste o Rei da Vela!

Abelardo I – Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O Rei da vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança pensando nas histórias das negras velhas… Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas em casa… As empresas elétricas fecharam com a crise… Ninguém mais pode pagar o preço da luz… A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu produzo de todos os tamanhos e cores. (Indica o mostruário). Para o Mês de Maria, para as cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende e se joga à noite, para a hora de estudo das crianças, para os contrabandistas no mar, mas a grande vela é à vela da agonia, aquela pequena velhinha de sebo que espalhei para o Brasil inteiro… Num país medieval como nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional!

Heloísa (Sonhando) – Meu pai era o Coronel Belarmino que tinha sete fazendas, aquela casa suntuosa de Higienópolis… ações, automóveis… Duas filhas viciadas, dois filhos tarados… Ficou morando na nossa casinha de Penha e indo à missa pedir a Deus a solução que os governos não deram…

Abelardo I – Que não deram aos que não podem viver sem empréstimos.

Heloísa – Meus pais… meus tios… meus primos…

Abelardo I – Os velhos senhores da terra que tinham que dar lugar aos novos senhores da terra!

Heloísa – No entanto, todos dizem que acabou a época dos senhores e dos latifúndios…

Abelardo I – Você sabe que o meu caso prova o contrário. Ainda não tenho o número de fazendas que seu pai tinha, mas já possuo uma área cultivada maior que a que ele teve no apogeu.

Heloísa – Há dez anos… A saca de café a duzentos mil-réis!
Abelardo I – Estamos de fato num ponto crítico em que podem predominar, aparentemente e em número, as pequenas lavouras. Mas nunca como potência financeira. Dentro do capitalismo, a pequena propriedade seguirá o destino da ação isolada nas sociedades anônimas. O possuidor de uma é mito econômico. Senhora minha noiva, a concentração do capital é um fenômeno que eu apalpo com as minhas mãos. Sob a lei da concorrência, os fortes comerão sempre os fracos. Desse modo é que desde já os latifúndios paulistas se reconstituem sob novos proprietários.

Heloísa – Formidável trabalho o seu!

Abelardo I – Não faça ironia com a sua própria felicidade! Nós dois sabemos que milhares de trabalhadores lutam de sol a sol para nos dar farra e conforto. Com a enxada nas mãos calosas e sujas. Mas eu tenho tanta culpa disso como o papa-níqueis bem colocado que se enche diariamente de moedas. É assim a sociedade em que vivemos. O regime capitalista que Deus guarde…

Heloísa – E você não teme nada?

Abelardo I – Os ingleses e americanos temem por nós. Estamos ligados ao destino deles. Devemos tudo, o que temos e o que não temos. Hipotecamos palmeiras… quedas d’água. Cardeais!

Heloísa – Eu li num jornal que devemos só a Inglaterra trezentos milhões de libras, mas só chegaram aqui trinta milhões…

Abelardo I – É provável! Mas compromisso é compromisso! Os países inferiores têm que trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para os ricos. Você acredita que New York teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil pernas mais bonitas da Terra se não se trabalhasse para Wall Street de Ribeirão Preto a Cingapura, de Manaus a Libéria? Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! Mas não me queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você…

(*) Do livro O Rei da Vela (1933). São Paulo, Editora Globo, 2003

O Santo Inquérito

Esta peça de Dias Gomes, escrita em 1966, continua muito mais atual do que gostaríamos!

A peça trata do julgamento de Branca pela Inquisição. Podemos acompanhar os acontecimentos desde o momento no qual Branca salva o Padre Bernardo e sua condenação final. Os conflitos vividos pelos personagens, as dúvidas provocadas pelo padre na fé tranquila de Branca são decorrente de seu desejo por ela.

A leitura deste texto vale tanto pelo contexto histórico e o conhecimento que esta trama possibilita, como pelas reflexões sobre a fé, a pureza ou a contraposição entre os dogmas e as crenças. Refletir sobre a intolerância presente na Inquisição é uma maneira de olharmos para outras demonstrações de intolerância, vividas de maneira ainda tão intensas.

Dias Gomes é bastante conhecido pela autoria da peça O Pagador de promessas, dentre muitas outras. Além de escrever para o teatro também trabalhou em rádio e foi o autor das novelas Roque Santeiro e O Bem Amado. Tem uma produção enorme, que vale a pena conhecer.

Comece agora lendo um trecho de O Santo Inquérito e continue pelo link: http://escoladacrianca.com.br/ws/wp-content/uploads/2017/03/dias-gomes-o-santo-inquerito.pdf

Primeiro Ato

O palco contêm vários praticáveis, em diferentes planos. Não constituem propriamente um cenário, mas um dispositivo para a representação, que é completado por uma rotunda. É total a escuridão no palco e na platéia. Ouve-se o ruído de soldados marchando. A princípio, dois ou três, depois quatro, cinco, um pelotão. Soa uma sirene de viatura policial, cujo volume vai aumentando, juntamente com a marcha, até chegar ao máximo. Ouvem-se vozes de comando confusas, que também crescem com os outros ruídos até chegarem a um ponto máximo de saturação, quando cessa tudo, de súbito, e acendem-se as luzes. As personagens estão todas em cena: Branca, o Padre Bernardo, Augusto Coutinho, Simão Dias, o Visitador, o Notório e os guardas.

PADRE BERNARDO: Aqui estamos, senhores, para dar início ao processo. Os que invocam os direitos do homem acabam por negar os direitos da fé e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que querem subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir. É muito fácil apresentar esta moça como um anjo de candura e a nós como bestas sanguinárias. Nós que tudo fizemos para salvá-la, para arrancar o Demônio de seu corpo. E se não conseguimos, se ela não quis separar-se dele, de Satanás, temos ou não o direito de castigá-la? Devemos deixar que continue a propagar heresias, perturbando a ordem pública e semeando os germes da anarquia, minando os alicerces da civilização que construímos, a civilização cristã? Não vamos esquecer que, se as heresias triunfassem, seríamos todos varridos! Todos! Eles não teriam conosco a piedade que reclamam de nós! E é a piedade que nos move a abrir este inquérito contra ela e a indiciá-la. Apresentaremos inúmeras provas que temos contra a acusada. Mas uma é evidente, está à vista de todos: ela está nua!

BRANCA: (Desce até o primeiro plano.) Não é verdade!

PADRE BERNARDO: Desavergonhadamente nua!

BRANCA: Vejam, senhores, vejam que não é verdade! Trago as minhas roupas, como todo o mundo. Ele é que não as enxerga! Padre sai, horrorizado.

BRANCA: Meu Deus, que hei de fazer para que vejam que estou vestida? É verdade que uma vez — numa noite de muito calor — eu fui banharme no rio… e estava nua. Mas foi uma vez. Uma vez somente e ninguém viu, nem mesmo as guriatãs que dormiam no alto dos jeribás! Será por isso que eles dizem que eu ofendi gravemente a Deus? Ora, o senhor Deus e os senhores santos têm mais o que fazer que espiar moças tomando banho altas horas da noite. Não, não é só por isso que eles me perseguem e me torturam. Eu não entendo… Eles não dizem… só acusam, acusam! E fazem perguntas, tantas perguntas!

VISITADOR: Come carne em dias de preceito?

BRANCA: Não…

VISITADOR: Mata galinhas com o cutelo?

BRANCA: Não, torcendo o pescoço.

VISITADOR: Come toicinho, lebre, coelho, polvo, arraia, aves afogadas?

BRANCA: Como…

VISITADOR: Toma banho às sextas-feiras?

BRANCA: Todos os dias…

VISITADO: sofrimento. Mas foi para que também o temêssemos e aprendêssemos a dar valor às coisas boas. Deus deve passar muito mais tempo na minha roça, entre as minhas cabras e o canavial batido pelo sol e pelo vento, do que nos corredores sombrios do Colégio dos Jesuítas. Deus deve estar onde há mais claridade, penso eu. E deve gostar de ver as criaturas livres como Ele as fez, usando e gozando essa liberdade, porque foi assim que nasceram e assim devem viver. Tudo isso que estou lhes dizendo, é na esperança de que vocês entendam… Porque eles, eles não entendem… Vão dizer que sou uma herege e que estou possuída pelo Demônio. E isso não é verdade! Não acreditem! Se o Demônio estivesse em meu corpo, não teria deixado que eu me atirasse ao rio para salvar Padre Bernardo, quando a canoa virou com ele!…

PADRE BERNARDO: (Fora de cena, gritando.) Socorro! Aqui del rei! Branca sai correndo. Volta, amparando Padre Bernardo, que caminha com dificuldade, quase desfalecido. Ela o traz até o primeiro plano e aí o deita, de costas. Debruça-se sobre ele e põe-se a jazer exercícios, movimentando seus braços e pernas, como se costuma jazer com os afogados. Vendo que ele não se reanima, cola os lábios na sua boca, aspirando e expirando, para levar o ar aos seus pulmões.

PADRE BERNARDO: (De olhos ainda cerrados, balbucia.) Jesus… Jesus, Maria, José… Ele se vai reanimando aos poucos. Abre os olhos e vê Branca, de joelhos, a seu lado.

PADRE BERNARDO: Obrigado, Senhor, obrigado por terdes atendido ao meu apelo desesperado… Não sou merecedor de tanta misericórdia. (Ele beija repetidas vezes um crucifixo que traz na mão.) Alma de Cristo, santificai-me; Corpo de Cristo, salvai-me; Sangue de Cristo, inebriaime…

BRANCA: Achava melhor o senhor deixar pra rezar depois. Agora era bom que virasse de bruços e baixasse a cabeça pra deixar sair toda essa água que engoliu. Ajudado por ela, ele vira de bruços e baixa a cabeça. Ela pressiona sua nuca, para fazer sair a água. BRANCA Se eu não chego a tempo, o senhor bebia todo o rio Paraíba…

PADRE BERNARDO: (Senta-se, meio atordoado ainda.) A minha canoa?…

BRANCA: A canoa? Seguiu emborcada, rio abaixo. Tinha alguma coisa de valor?

PADRE BERNARDO: Tinha, o cofre com as esmolas…

BRANCA: Muito dinheiro?

PADRE BERNARDO: Bastante.

BRANCA: Agora deve estar no fundo do rio.

PADRE BERNARDO: Só consegui agarrar o crucifixo; tinha de escolher, uma coisa ou outra…

BRANCA: Foi uma pena. Com o dinheiro, o senhor talvez comprasse dois crucifixos. E quem sabe ainda sobrava.

PADRE BERNARDO: Não diga isso, filha!

BRANCA: Por quê?

PADRE BERNARDO: Porque é o Cristo… Não é coisa que se compre. Tivesse eu escolhido o cofre e certamente a esta hora estaria no fundo do rio com ele. Foi Jesus quem me salvou.

BRANCA: (Timidamente.) Eu ajudei um pouco…

PADRE BERNARDO Eu sei. Você foi o instrumento. Não estou sendo ingrato. Sei que arriscou a vida para me salvar.

BRANCA: Não foi tanto assim. O rio aqui não é muito fundo e a correnteza não é lá tão forte. Quando a gente está acostumada…

PADRE BERNARDO: Acostumada?…

BRANCA: Venho banhar-me aqui todos os dias. Sei nadar e salvar alguém que está se afogando. É só puxar pelos cabelos. Com o senhor foi um pouco difícil por causa da tonsura. Tive de puxar pela batina. Me cansei um pouco, mas estou contente comigo mesma. Hoje vai ser um dia muito feliz para mim.

PADRE BERNARDO: Deus lhe conserve essa alegria e lhe faça todos os dias praticar uma boa ação, como a de hoje.

BRANCA: Não é fácil. Acho que as boas ações só valem quando não são calculadas. E Deus não deve levar em conta aqueles que praticam o bem só com a intenção de agradar-Lhe. Estou ou não estou certa?

PADRE BERNARDO: Bem…

BRANCA: Não foi querendo agradar a Deus que eu me atirei ao rio para salvá- lo. Foi porque isso me deixaria satisfeita comigo mesma. Porque era um gesto de amor ao meu semelhante. E é no amor que a gente se encontra com Deus. No amor, no prazer e na alegria de viver. (Ela nota que o Padre se mostra um pouco perturbado com as suas palavras.) Estou dizendo alguma tolice?

PADRE: No fundo, talvez não. Mas a sua maneira de falar… Quem é o seu confessor?

BRANCA: Não tenho confessor. Vivo aqui, no Engenho Velho, que é de meu pai, Simão Dias, que o senhor deve conhecer de nome. Custo a ir à cidade.

PADRE: Não vai à missa, aos domingos, ao menos?

BRANCA: Nem todos os domingos. Mas não pense que porque não vou diariamente à igreja não estou com Deus todos os dias. Faço sozinha as minhas orações, rezo todas as noites antes de dormir e nunca me esqueço de agradecer a Deus tudo o que recebo Dele.

PADRE: Gostaria de discutir com você esses assuntos. Não hoje, porque estamos ambos molhados, precisamos trocar de roupa.

BRANCA: Vamos lá em casa, o senhor tira a batina e eu ponho pra secar. Posso lhe arranjar uma roupa de meu pai, enquanto o senhor espera.

PADRE: (A proposta parece assumir para ele uns aspectos de tentação.) Não… isso não é direito…

BRANCA: Por que não?

PADRE: Já lhe dei muito trabalho por hoje. E preciso voltar o quanto antes ao colégio.

BRANCA: Que colégio?

PADRE: O Colégio dos Jesuítas. Sou o Padre Bernardo.

BRANCA: Lá aceitam moças?

PADRE: Não… só meninos, rapazes.

BRANCA: Por que nunca aceitam moças nos colégios?

PADRE: Porque moças não precisam estudar.

BRANCA: Nem mesmo ler e escrever?

PADRE: Isso se aprende em casa, quando se quer e os pais consentem.

BRANCA: (Com certo orgulho.) Eu aprendi. Sei ler e escrever. E Augusto diz que faço ambas as coisas melhor do que qualquer escrivão de ofício.

PADRE: Quem é Augusto?

BRANCA: Meu noivo. Foi ele quem me ensinou. Mas foi preciso que eu insistisse muito e quase brigasse com meu pai. É tão bom.

PADRE: Ler?

BRANCA: Sim. Sabe as coisas que mais me divertem? Ler estórias e acompanhar procissão de formigas. (O Padre ri.) Sério. Tanto nos livros como nas formigas a gente descobre o mundo. (Ri.) Quando eu era menina, conhecia todos os formigueiros do engenho. O capataz botava veneno na boca dos buracos e eu saía de noite, de panela em panela, limpando tudo. Depois ia dormir satisfeita por ter salvo milhares de vidas. O Padre espirra.

BRANCA: Oh, mas o senhor com essa roupa molhada no corpo e eu aqui contando estórias. O senhor me desculpe…

PADRE: Não tenho de que desculpá-la, tenho que lhe agradecer, isto sim. Gostaria muito de continuar a ouvir as suas estórias. Todas, todas as estórias que você tiver para me contar.

BRANCA: Pois venha, venha nos visitar lá no engenho. Eu me chamo Branca. Ela beija a mão que ele lhe estende.

PADRE: Branca… você é um dos tesouros do Senhor. Preciso cuidar de você. (Sai.)

Pluft, o fantasminha.

Esta peça é, com certeza, uma das mais conhecidas peças infantis brasileiras. Escrita por Maria Clara Machado, foi ao palco pela primeira vez no Tablado no Rio de Janeiro, em setembro de 1955, com cenário de Napoleão Moniz Freire, figurinos de Kalma Murtinho, sonoplastia de Edelvira Fernandes e Martha Rosman e direção de Maria Clara Machado.

Vale a pena conhecer a obra desta autora, que tem quase 30 peças infantis!

Neste texto é possível observar o conhecimento do teatro de Maria Clara Machado, pelas indicações feitas seja para o cenário, figurino ou para a atuação. Enquanto lemos é possível imaginar a cena dentro do sótão e se divertir com o fato inusitado de um fantasminha que tem medo de gente.

Leia um trecho da peça neste post e termine a leitura no link: http://www.pilha.vrc.puc-rio.br/pilha6/pdf/pluft.pdf

 

As duas imagens deste posta são montagens do Tablado , a primeira de 1955 e a segunda de 2014.

ATO ÚNICO

Cenário: Um sótão. À direita uma janela dando para fora de onde se avista o céu. No meio, encostado à parede do fundo, um baú. Uma cadeira de balanço. Cabides onde se vêem, pendurados, velhas roupas e chapéus. Coisas de marinha. Cordas, redes. O retrato velado do capitão Bonança. À esquerda, a entrada do sótão. Ao abrir o pano, a Senhora Fantasma faz tricô, balançando-se na cadeira, que range compassadamente. Pluft, o fantasminha, brinca com um barco. Depois larga o barco e pega uma velha boneca de pano. Observa-a por algum tempo.

PLUFT: Mamãe!

MÃE: O que é, Pluft?

PLUFT: (Sempre com a boneca de pano) Mamãe, gente existe?

MÃE: Claro, Pluft. Claro que gente existe.

PLUFT: Mamãe, tenho tanto medo de gente! (Larga a boneca.)

MÃE: Bobagem, Pluft.

PLUFT: Ontem passou lá embaixo, perto do mar, e eu vi.

MÃE: Viu o que, Pluft?

PLUFT: Vi gente, mamãe. Só pode ser. Três.

MÃE: E você teve medo?

PLUFT: Muito, mamãe.

MÃE: Você é bobo, Pluft. Gente é que tem medo de fantasma e não fantasma que tem medo de gente.

PLUFT: Mas eu tenho.

MÃE: Se seu pai fosse vivo, Pluft, você apanharia uma surra com esse medo bobo. Qualquer dia destes eu vou te levar ao mundo para vê-los de perto.

PLUFT: Ao mundo, mamãe?!!

MÃE: É, ao mundo. Lá embaixo, na cidade…

PLUFT: (Muito agitado vai até a janela. Pausa.) Não, não, não. Eu não acredito em gente, pronto…

MÃE: Vai sim, e acabará com estas bobagens. São histórias demais que o tio Gerúndio conta para você. (Pluft corre até um canto e apanha um chapéu de almirante.)

PLUFT: Olha, mamãe, olha o que eu descobri! O que é isto?!

MÃE: Isto tio Gerúndio trouxe do mar. (Pluft fora de cena continua a descobrir coisas, que vai jogando em cena: panos, roupas, chapéus etc.)

PLUFT: Por que tio Gerúndio não trabalha mais no mar, hem, mamã?

MÃE: Porque o mar perdeu a graça para ele…

PLUFT: (Sempre remexendo, descobre um espartilho de mulher) E isto, mamãe, (aparecendo) que é isso? Ele trouxe isto também do mar? (Coloca o espartilho na cabeça e passeia em volta da mãe.)

O doente imaginário

Esta peça foi escrita por Molière e a primeira encenação ocorreu em 10 de fevereiro de 1673. Você pode estar se perguntando qual a razão em ler um texto tão antigo e não há dúvida de que é uma boa pergunta. A minha resposta para tal pergunta é de que, apesar dos 344 anos que separam sua primeira apresentação deste post, o texto continua atual!

É incrível como existem questões que permanecem nas relações humanas por tanto tempo.

Cacá Rosset em O doente imaginário, disponível em http://tc.batepapo.uol.com.br

Molière é um clássico da dramaturgia mundial e um dos maiores comediógrafos de todos os tempos. Possivelmente por ter sido ator e diretor, seu texto demonstra a noção do efeito cômico, do que pode funcionar no palco.

Molière usou as suas obras para criticar os costumes da época. É possível observar a influência da Comédia Del’Arte, porém suas peças ultrapassaram a comédia de costumes unindo entretenimento e reflexão, com críticas aos burgueses, nobres, ao poder político e as regras da sociedade em geral.

Em “O doente imaginário”, Molière critica a classe médica, com seus palavrórios, escritos e fórmulas ininteligíveis. Os médicos são seu principal alvo, demonstrando a maneira pela qual se relacionam com seus pacientes fazendo uso do poder sobre quem está doente ou assim acredita estar.

Argan é o personagem central, hipocondríaco, sovina, carente e solitário. A sua volta veremos os diferentes personagens interessados em seu dinheiro e em obter proveito desta condição. Outros tentam alertá-lo e nesta situação vemos tramada uma história de poder, interesse e manipulação.

Vale a pena se divertir e conhecer um pouco deste autor. Se você gostar desta, pode ler um pouco mais, algumas de suas peças são: Escola de mulheres, Tartufo e O Misantropo.

Aí vai um pouco do texto para dar vontade de mais.

Foto disponível em: https://repositorio.unesp.br

CENA II

Nieta:(entrando) Já vai.

Argon: Sua cachorra. Sua malandra!

Nieta: (fingindo ter batido a cabeça) Puxa vida, que impaciência. O senhor apressa tanto a gente que eu acabei batendo com a cabeça, com toda a força, na porta.

Argon: Traidora.

Nieta: (Fica se lamentando para interrompê-lo e impedi-lo de gritar) Ai… Ai…

Argon: Faz…

Nieta: Ai.

Argon: Faz uma hora…

Nieta: Ai.

Argon: …que você me deixou…

Nieta: Ai.

Argon: Cale a boca, fingida, que eu estou te repreendendo.

Nieta: Ainda mais essa, depois de tudo o que me aconteceu.

Argon: Você me obrigou a grita, cretina.

Nieta: E eu, por sua causa quase quebro a cabeça. Estamos quites, então.

Argon: Sua bandida.

Nieta: Se continuar xingando, vou chorar.

Argon: Me largar sozinho…

Nieta: (Para interrompê-lo) Ai.

Argon: Cachorra. Você quer…

Nieta: Ai.

Argon: Será que eu não posso nem ter o prazer de brigar?

Nieta: Brigue o quanto quiser, eu não ligo.

Argon: Você me impede, sua imbecil, me interrompendo a toda hora.

Nieta: Se o senhor tem prazer em brigar, eu tenho prazer em chorar. Cada um faz o que gosta. Não há nada demais.

Argon: Está bem. Desisto. Tire isso daqui, tire. (Ele se levanta da cadeira) Veja se minha lavagem, de hoje, fez efeito.

Nieta: Sua lavagem?

Argon: É. Saiu minha bílis?

Nieta: Ah, não. Não tenho nada a ver com essa coisa. O Sr. Flores que meta o nariz aí. Ele ganha para isso.

Argon: Que mantenham a água fervendo para a próxima.

Nieta: Esse Sr. Flores e esse Dr. Purgan se divertem bem como o seu corpo. Têm no senhor uma vaca leiteira e eu adoraria perguntar a eles o motivo de tantos remédios.

Argon: Fique quieta, ignorante. Não é você que vai controlar minhas receitas médicas. Chame Angélica. Quero falar com ela.

Nieta: Parece que adivinhou seu pensamento, pois já está aqui.

Quem tem casa, casa?

Tatiana Belinky é a autora desta peça e de muitas outras! Esta autora escreveu para o público infantil e infanto-juvenil, somando mais de 250 obras e tendo recebido importantes prêmios nacionais e internacionais, como o Prêmio Jabuti, em 1989. Alguns de seus livros são “Olhos de ver”, “O caso do bolinho”, “O grande rabanete”, “Tatu na casca”, “Transplante de menina” e “O livro das tatianices”.

Nesta peça podemos conhecer a história de Mujim, o Caramujo e Lelé, a Lesminha.

Com humor e delicadeza, a peça aborda conflitos presentes na vida de qualquer casal, estabelecendo paralelo com os personagens do mundo animal.

É um texto que pode ser explorado com crianças de várias idades, pela aproximação entre as crianças e os animais, além das situações cômicas presentes no enredo.

Leia um pequeno trecho para dar vontade de mais:

“Mujim: Fofinha… acho que escutei você cantando que é solteira?

Lelé: Eu sou mesmo

Mujim (animado): Eu também…

Lelé (fiteira): Que coincidência! (Rebola um pouco)

Mujim: Feliz coincidência! Que me deu uma linda ideia

Lelé (que já sabe o que é): Que ideia Mujim? Não faço ideia…

Mujim: É que… já que somos ambos solteiros… que tal se… (decidido) – Assim que a vi, fiquei apaixonado, Lelé. Lelezinha, quer casar comigo?”

Para saber como continua, você terá que ler toda a peça!

Romeu e Julieta

Falar das peças de Willian Shakespeare é fácil! Não porque seus textos sejam simples ou porque sejam poucos, mas porque são bons! E como meu propósito nesta aba desse blog é fazer com que você tenha vontade de ler dramaturgia, este autor me deixa com muitos argumentos para te convencer.

Das peças escritas por Shakespeare, 38 chegaram até os dias atuais. Tendo vivido entre os anos de 1564 e 1616, na Inglaterra, foi diretor de um teatro “O Globe” e é o principal representante das obras deste período na Europa, ainda que tenhamos outras formas teatrais também importantes no Renascimento.

Giulia Gam e Marco Antonio Pamio na montagem de Romeu e Julieta, de 1984, dirigida por Antunes Filho, disponível em http://ocafe.com.br/teatro/grandes-diretores-antunes-filho/

Shakespeare escreveu tragédias e comédias, além de dramas históricos. Seus personagens são bastante conhecidos, sendo possivelmente a frase de Hamlet “Ser ou não ser, eis a questão” uma das mais conhecidas de toda a dramaturgia mundial, mesmo considerando o fato de que muitas pessoas que conhecem a frase nunca tenham lido nenhuma de suas peças.

Escolhi sua peça mais famosa: Romeu e Julieta! Minha escolha deve-se ao fato de adorar esta história e este texto. Considero uma boa aproximação ao autor, mas somente se você for alguém que se interesse por histórias de amor. Se não for, leia outra, pode ser Hamlet ou Rei Lear se quiser uma tragédia, ou fique com A megera Domada ou Sonhos de uma noite de verão, caso prefira uma comédia!

A história de Romeu e Julieta dispensa explicações, mas caso você nunca tenha ouvido falar aí vai uma brevíssima explicação: a peça conta o encontro de dois jovens, de famílias que se odeiam e que, por diferentes desencontros terminarão morrendo.

A tragédia da impossibilidade de viver esta paixão nos envolve e faz com que o sofrimento vivido pelos dois possa ser reconhecido, ainda que você tenha se apaixonado somente por pessoas permitidas.

Para além da história bem tramada, o texto é de uma beleza fascinante, destes que nos fazem agradecer a felicidade que é poder ler e imaginar!

Escolhi uma cena, a famosa cena do balcão e não consegui postar somente um pedaço, então aproveite e leia a cena completa! Depois de ler, consiga o texto na íntegra e se delicie, com direito a lágrimas no final.

Montagem do Grupo Galpão, disponível em http://teatrojornal.com.br/2014/04/ode-a-shakespeare/. Foto de Valmir Santos.

ROMEU E JULIETA, ATO II, Cena II

O mesmo. Jardim de Capuleto. Entra Romeu.

ROMEU – Só ri das cicatrizes quem ferida nunca sofreu no corpo. (Julieta aparece na janela.) Mas silêncio! Que luz se escoa agora da janela? Será Julieta o sol daquele oriente? Surge, formoso sol, e mata a lua cheia de inveja, que se mostra pálida e doente de tristeza, por ter visto que, como serva, és mais formosa que ela. Deixa, pois, de servi-la; ela é invejosa. Somente os tolos usam sua túnica de vestal, verde e doente; joga-a fora. Eis minha dama. Oh, sim! é o meu amor. Se ela soubesse disso! Ela fala;
contudo, não diz nada. Que importa? Com o olhar está falando. Vou responder-lhe. Não; sou muito ousado; não se dirige a mim: duas estrelas do céu, as mais formosas, tendo tido qualquer ocupação, aos olhos dela pediram que brilhassem nas esferas, até que elas voltassem. Que se dera se ficassem lá no alto os olhos dela, e na sua cabeça os dois luzeiros? Suas faces nitentes deixariam corridas as estrelas, como o dia faz com a luz das candeias, e seus olhos tamanha luz no céu espalhariam, que os pássaros, despertos, cantariam. Vede como ela apoia o rosto à mão. Ah! se eu fosse uma luva dessa mão, para poder tocar naquela face!
JULIETA – Ai de mim!
ROMEU – Oh, falou! Fala de novo, anjo brilhante, porque és tão glorioso para esta noite, sobre a minha fronte, como o emissário alado das alturas ser poderia para os olhos brancos e revirados dos mortais atônitos, que, para vê-lo, se reviram, quando montado passa nas ociosas nuvens e veleja no seio do ar sereno.
JULIETA – Romeu, Romeu! Ah! por que és tu Romeu? Renega o pai, despoja-te do nome; ou então, se não quiseres, jura ao menos que amor me tens, porque uma Capuleto deixarei de ser logo.
ROMEU (à parte) – Continuo ouvindo-a mais um pouco, ou lhe respondo?
JULIETA – Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição
que dele é sem esse título. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira.
ROMEU – Sim, aceito tua palavra. Dá-me o nome apenas de amor, que ficarei rebatizado. De agora em diante não serei Romeu.
JULIETA – Quem és tu que, encoberto pela noite, entras em meu segredo?
ROMEU – Por um nome não sei como dizer-te quem eu seja. Meu nome, cara santa, me é odioso, por ser teu inimigo; se o tivesse diante de mim, escrito, o rasgaria.
JULIETA – Minhas orelhas ainda não beberam cem palavras sequer de tua boca, mas reconheço o tom. Não és Romeu, um dos Montecchios?
ROMEU – Não, bela menina; nem um nem outro, se isso te desgosta.
JULIETA – Dize-me como entraste e porque vieste. Muito alto é o muro do jardim, difícil de escalar, sendo o ponto a própria morte – se quem és atendermos – caso fosses encontrado por um dos meus parentes.
ROMEU – Do amor as lestes asas me fizeram transvoar o muro, pois barreira alguma conseguirá deter do amor o curso, tentando o amor tudo o que o amor realiza. Teus parentes, assim, não poderiam desviar-me do propósito.
JULIETA – No caso de seres visto, poderão matar-te.
ROMEU – Ai! Em teus olhos há maior perigo do que em vinte punhais de teus parentes. Olha-me com doçura, e é quanto basta para deixar-me à prova do ódio deles.
JULIETA – Por nada deste mundo desejara que fosses visto aqui.
ROMEU – A capa tenho da noite para deles ocultar-me. Basta que me ames, e eles que me vejam! Prefiro ter cerceada logo a vida pelo ódio deles, a ter morte longa, faltando o teu amor.
JULIETA – Com quem tomaste informações para até aqui chegares?
ROMEU – Com o amor, que a inquirir me deu coragem;. deu-me conselhos e eu lhe emprestei olhos. Não sou piloto; mas se te encontrasses tão longe quanto a praia mais extensa que o mar longínquo banha, aventurara-me para obter tão preciosa mercancia.
JULIETA – Sabe-lo bem: a máscara da noite me cobre agora o rosto; do contrário, um rubor virginal me pintaria, de pronto, as faces, pelo que me ouviste dizer neste momento. Desejara – oh! minto! – retratar-me do que disse. Mas fora! fora com as formalidades! Amas-me? Sei que vais dizer-me “sim”, e creio no que dizes. Se o jurares, porém, talvez te mostres inconstante, pois dos perjúrios dos amantes,
dizem, Jove sorri. Ó meu gentil Romeu! Se amas, proclama-o com sinceridade; ou se pensas, acaso, que foi fácil minha conquista, vou tornar-me ríspida, franzir o sobrecenho e dizer “não”, porque me faças novamente a corte. Se não, por nada, nada deste mundo. Belo Montecchio, é certo: estou perdida, louca de amor; daí poder pensares que meu procedimento é assaz leviano; mas podeis crer-me, cavalheiro, que
hei de mais fiel mostrar-me do que quantas têm bastante astúcia para serem cautas. Poderia ter sido mais prudente, preciso confessá-lo, se não fosse teres ouvido sem que eu percebesse, minha veraz paixão. Assim, perdoa-me, não imputando à leviandade, nunca, meu abandono pronto, descoberto tão facilmente pela noite escura.
ROMEU – Senhora, juro pela santa lua que acairela de prata as belas frondes de todas estas árvores frutíferas…
JULIETA – Não jures pela lua, essa inconstante, que seu contorno circular altera todos os meses, porque não pareça que teu amor, também, é assim mudável.
ROMEU – Por que devo jurar?
JULIETA – Não jures nada, ou jura, se o quiseres, por ti mesmo, por tua nobre pessoa, que é o objeto de minha idolatria. Assim, te creio.
ROMEU – Se o amor sincero deste coração…
JULIETA – Pára! não jures; muito embora sejas toda minha alegria, não me alegra a aliança desta noite; irrefletida foi por demais, precipitada, súbita, tal qual como o relâmpago que deixa de existir antes que dizer possamos: Ei-lo! brilhou! Boa noite, meu querido. Que o hálito do estio amadureça este botão de amor, porque ele possa numa flor transformar-se delicada, quando outra vez nos virmos. Até à vista; boa
noite. Possas ter a mesma calma que neste instante se me apossa da alma.
ROMEU – Vais deixar-me sair mal satisfeito?
JULIETA – Que alegria querias esta noite?
ROMEU – Trocar contigo o voto fiel de amor.
JULIETA – Antes que mo pedisses, já to dera; mas desejara ter de dá-lo ainda.
ROMEU – Desejas retirá-lo? Com que intuito, querido amor?
JULIETA – Porque, mais generosa, de novo to ofertasse. No entretanto, não quero nada, afora o que possuo. Minha bondade é como o mar: sem fim, e tão funda quanto ele. Posso dar-te sem medida, que muito mais me sobra: ambos são infinitos.
(A ama chama dentro.)
Ouço bulha dentro de casa. Adeus, amor! Adeus! – Ama, vou já! – Sê fiel, doce Montecchio. Espera um momentinho; volto logo.
(Retira-se da janela.)
ROMEU – Oh! que noite abençoada! Tenho medo, de um sonho, lisonjeiro em demasia para ser realidade.
(Julieta torna a aparecer em cima.)
JULIETA – Romeu querido, só três palavrinhas, e boa noite outra vez. Se esse amoroso pendor for sério e honesto, amanhã cedo me envia uma palavra pelo próprio que eu te mandar: em que lugar e quando pretendes realizar a cerimônia, que a teus pés deporei minha ventura, para seguir-te pelo mundo todo como a senhor e esposo.
AMA (dentro) – Senhorita!
JULIETA – Já vou! Já vou! – Porém se não for puro teu pensamento, peço-te…
AMA (dentro) – Menina!
JULIETA – Já vou! Neste momento! – … que não sigas com tuas insistências e me deixes entregue à minha dor. Amanhã cedo te mandarei recado por um próprio.
ROMEU – Por minha alma…
JULIETA – Boa noite vezes mil.
(Retira-se.)
ROMEU – Não, má noite, sem tua luz gentil. O amor procura o amor como o estudante que para a escola corre: num instante. Mas, ao se afastar dele, o amor parece que se transforma em colegial refece.
(Faz menção de retirar-se.)
(Julieta torna a aparecer em cima.)
JULIETA – Psiu! Romeu, psiu! Oh! quem me dera o grito do falcoeiro, porque chamar pudesse esse nobre gavião! O cativeiro tem voz rouca; não pode falar alto, senão eu forçaria a gruta de Eco, deixando ainda mais rouca do que a minha sua voz aérea, à força de cem vezes o nome repetir do meu Romeu.
ROMEU – Minha alma é que me chama pelo nome. Que doce som de prata faz a língua dos amantes à noite, tal qual música langorosa que ouvido atento escuta?
JULIETA – Romeu!
ROMEU – Minha querida?
JULIETA – A que horas, cedo, devo mandar alguém para falar-te?
ROMEU – Às nove horas.
JULIETA – Sem falta. Só parece que até lá são vinte anos. Esqueci-me do que tinha a dizer.
ROMEU – Deixa que eu fique parado aqui, até que te recordes.
JULIETA – Esquecê-lo-ia, só para que sempre ficasses ai parado, recordando-me de como adoro tua companhia.
ROMEU – E eu ficaria, para que esquecesses, deixando de lembrar-me de outra casa que não fosse esta aqui.
JULIETA – É quase dia; desejara que já tivesses ido, não mais longe, porém, do que travessa menina deixa o meigo passarinho, que das mãos ela solta – tal qual pobre prisioneiro na corda bem torcida – para logo puxá-lo novamente pelo fio de seda, tão ciumenta e amorosa é de sua liberdade.
ROMEU – Quisera ser teu passarinho.
JULIETA – O mesmo, querido, eu desejara; mas de tanto te acariciar, podia, até, matar-te. Adeus; calca-me a dor com tanto afã, que boa-noite eu diria até amanhã.
ROMEU – Que aos teus olhos o sono baixe e ao peito. Fosse eu o sono e dormisse desse jeito! Vou procurar meu pai espiritual, para um conselho lhe pedir leal.
(Sai.)