Ingressos esgotados, cheguei antes e fiquei na espera de sobrar um lugar. Sobrou!
Fui assistir esse espetáculo com uma grande expectativa, tanto por ser um texto do Jonny Salaberg, sobre quem já escrevi um artigo que você pode ler aqui, como por ter sido recomendado pela minha filha, Teresa Perrotti, que tem um olhar atento ao que assiste.
E já que falei do autor, começo pela dramaturgia. A peça aborda uma temática necessária e bastante ignorada: a das mulheres parturientes detidas. Como mulher, como mãe, dói acompanhar essa narrativa, pontuada pelos momentos nos quais a personagem, que também é mãe, nos fala sobre a dor dessa distância, sobre a expectativa da separação, sobre a tristeza do parto na condição de presa.
O texto nos coloca na pilha da fuga que vai sendo montada com a emoção do medo permanente, no paralelo do jogo do Brasil na Copa do Mundo. Queria ter lido o texto antes da peça, mas vou ler depois, já com o livro na mão, que você pode comprar para ter uma outra percepção desse texto pela tua leitura.
A montagem é atordoante, positivamente atordoante. No jogo de luz e de cenário, que vão nos colocando de lá para cá, junto com as emoções da Rose. A música tocada ao vivo pela Reblack é um presente a mais, na sintonia com a atuação, dedo a dedo. Direção precisa de Naruna Costa.
Aysha Nascimento dá um show! Sua atuação é para quem tem fôlego. Fiquei ligada o tempo todo e profundamente tocada em muitos momentos. Aysha consegue dar uma alegria à personagem, que se mistura com a tristeza presente em muitas das situações e com o medo da violência anunciada assim que a peça começa. Uma atuação que mexe com as vísceras, que impacta no centro do corpo.
Ficha Técnica
Idealização e dramaturgia: Jhonny Salaberg
Direção: Naruna Costa
Atuação: Aysha Nascimento
Musicista em cena: Reblack
Direção musical e composições: Giovani Di Ganzá
Preparação corporal e coreografia: Malu Avelar
Cenografia e figurino: Ouroboros Produções Artísticas – Carolina Gracindo, Thais Dias e Iolanda Costa
Desenho e operação de luz: Gabriele Souza
Sonoplastia e operação de som: Tomé de Souza
Identidade visual: Sato do Brasil
Fotos: Edu Luz e Noelia Nájera
Produção: Washington Gabriel e Corpo Rastreado
Assessoria de Imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
Delicadeza é a palavra que me vem a mente quando penso nessa peça.
Assisti no dia 29 de setembro no TUSP Maria Antônia, onde a peça fica em cartaz às sextas, sábados e domingos até 28 de outubro, com entrada gratuita. Uma possibilidade imperdível para moradores de São Paulo ou de cidades próximas.
Logo de cara somos colocados em cadeiras giratórias, espalhadas pela sala, que permitem o diálogo com a cena pelo movimento da atriz Lucienne Guedes. Mas antes mesmo dela aparecer, estamos nessa sala com o pianista e a parede de tijolos de vidro, que causam uma mescla de expectativa e imersão. Não há o conforto do escurinho do teatro a italiana, onde ficamos escondidos, estamos expostos junto com ela, mas é menos uma sensação de incomodo e mais de submersão.
E vamos aos poucos submergindo em seus sonhos, sonhos da atriz e do Walter Benjamin, o que é possível saber pelo panfleto da peça.
A beleza da cena pode ser vista sob diferentes aspectos: no uso da transparência da parede de vidro, assim como das projeções que conversam com os sonhos e, também, no figurino, de Claudia Schapira.
Sou uma observadora de figurinos, porque a costura me encanta, mas esse chama a atenção de qualquer um. São vários recursos para desvelar a atriz/personagem que é tão linda quanto o figurino. As diferentes camadas de brancos, os tons que se sobrepõem, chegando a uma sobrepele, um vestido que cobre o necessário para não ganhar um teor apelativo, mas que demonstra a nudez de sua narrativa.
A peça é composta por canções e texto, o pianista Daniel Maudonnet está junto com ela em cena e a música é mais uma escolha que nos leva para esse espaço onírico do sonho. A atriz tem uma bela voz, mais um exemplo da delicadeza com que iniciei esse texto, as músicas nos envolvem, assim como os olhares da Luciene, que vê as pessoas que estão ali.
Para saber mais sobre, visite a página no Instagram, nesse link ou leia aqui o texto do Joaquim Gama, também sobre o espetáculo. E vá!
Dramaturgia e atuação: Lucienne Guedes / Encenação e espaço cênico: Eliana Monteiro / Piano, composição musical e arranjos: Daniel Maudonnet / Letras das músicas: Lucienne Guedes / Iluminação: Aline Santini / Vídeo: Bianca Turner / Direção de movimento: Irupé Sarmiento / Figurino: Claudia Schapira / Assistência de iluminação e operação de luz: Gabriela Ciancio / Operação de luz: Felipe Mendes / Engenharia de som: Filipe Magalhães / Design: Renan Marcondes / Fotografia: Mayra Azzi / Assessoria de imprensa: Pombo Correio / Release: Douglas Picchetti e Helô Cintra / Redes sociais: Jorge Ferreira / Estagiária no processo de criação: Bárbara Freitas / Assistência de produção: Renata Allucci e Sofia Marucci / Direção de produção: Leonardo Birche
“no teatro kabuqui, há um gesto que indica ‘olhar para a lua’, quando o ator aponta o dedo indicador para o céu. Certa vez, um ator, que era muito talentoso, interpretou tal gesto com graça e elegância. O público pensou: ‘Oh, ele fez um belo movimento’. Apreciaram a beleza de sua interpretação e a exibição de seu virtuosismo técnico.
Um outro ator fez o mesmo gesto: apontou para a lua. O público não percebeu se ele tinha ou não realizado um movimento elegante; simplesmente viu a lua”
O que será que faz com que um dos atores atue com tanta beleza que ficamos atentos aos seus gestos, a seu corpo, a suas expressões?
A princípio, uma atuação assim pode parecer a mais desejada de todas, afinal, quem não quer conseguir essa beleza gestual? Mas será essa a principal função do teatro? Será para ver a virtuose da artista que vamos ao teatro? Ou vamos para ver a lua?
Oida termina sua frase dizendo: “Eu prefiro este tipo de ator: o que mostra a lua ao público. O ator capaz de se tornar invisível.”
Eu concordo com ele, vou ao teatro para ver a lua, ainda que possa me encantar com a beleza de um gesto. Quando uma montagem teatral me leva para além do real, vivo algo que minha vida não me dá sem a arte.
Buraquinhos é dessas peças que você começa a ler e vai até o final, meio sem fôlego, perdendo o ar, com a sensação de estar correndo junto.
A leitura te leva a imaginar tanto as possibilidades de encenação, como dos muitos lugares por onde o personagem vai correndo.
Você pode ler o texto publicado pela Editora Cobogó ou você pode ver o vídeo publicado pelo SESC Pompéia nesse link
No Itaú Cultural é possível ler sobre a peça: “O ponto de partida acontece quando um menino negro, morador de Guaianases, bairro na zona leste de São Paulo, vai à padaria e leva um “enquadro” de um policial. A partir daí ele começa a correr e não para mais, o que o leva a uma maratona pelo mundo, passando por países da América Latina e da África.
Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã é idealizada por Jhonny Salaberg, ator, dramaturgo, bailarino, arte-educador e membro fundador do coletivo Carcaça de Poéticas Negras. O grupo artístico desenvolve uma pesquisa de linguagem sobre o corpo negro urbano e suas diásporas, o genocídio e o etnocentrismo na contemporaneidade e a carcaça de símbolos da ancestralidade negra.”
A peça foi super premiada e ficou 5 anos em cartaz. No dia 10 de abril de 2022, no Facebook da peça foi feita uma publicação que dizia: “No ano de aniversário de 5 anos em cartaz, voltamos pra contar essa história que, inevitavelmente, permanece atualizada. Por todos os corpos e corpas pretes ceifados pelo estado! Visto por mais 6.000 pessoas, premiado em 8 categorias de teatro, referenciado em Universidades Federais/Estaduais, Instituições, Escolas de Teatro no Brasil e na Europa (Noruega e França)”
Você também pode ver muito do que o grupo fez no Instagram, neste link.
São muitos os motivos para que você leia o texto, mas o principal é que o texto é bom!
A peça de Griselda Gambaro nos coloca dentro de uma situação absurda ou no mínimo estranha, na qual um homem vai a uma barbearia e aceita todas as imposições do barbeiro.
No texto de Sara Rojo de la Rosa sobre as obras de Griselda Gambaro ela comenta sobre essa fase ser um momento no qual a dramaturga apresenta “um mundo masculino sem saídas.”
Ao resumir seus comentários, diz: “podemos afirmar que a dramaturgia de Griselda Gambaro, inserida na história latino-americana, assume a problemática do poder com uma enunciação ciente de todos os aspectos: políticos, estéticos, genéricos, etc. Cada linguagem experimentada, cada forma empregada e cada signo utilizado estão relacionados a um projeto estético-teatral com fundamentos políticos. Por isso, quando a produção de Griselda Gambaro é rotulada exclusivamente dentro da linha dos criadores do absurdo europeu, sem se contemplar sua proposta teórica global, restringe-se a análise exclusivamente à forma.”
Esse pequeno trecho mostra um pouco desse poder exercido e da submissão opressora vivida pelo homem. A intensidade nessa forma enxuta, nesse texto curto nos oferece um tanto do que vamos vivendo cotidianamente. De alguma forma sufoca, mas com uma fluidez que te mantem presa ao texto, com vontade de saber da continuidade, do desenrolar e da maneira pela qual esse desfecho será possível.
Ficou com vontade de ler todo o texto, clique aqui e aproveite!
Um abajur ou equipamento de iluminação, equipamento de som
Como acontece?
Quantas maneiras será que podemos narrar um acontecimento?
Essa proposta busca explorar as diferentes maneiras de narrarmos um mesmo acontecimento, partindo de um texto escrito. O texto pode ser retirado da literatura, do jornal ou escrito pelos alunos, desde que cada um tenha o seu. O tamanho do texto deve ser pequeno, para ser possível realizar a narrativa diversas vezes.
Caso o grupo de alunos seja muito grande, poderá ser dividido em dois ou três, para que todos possam fazer a narrativa sem tanta espera.
A intensão é de encontrarmos diferentes maneiras de narrarmos algo, dando entonações e sentidos variados. Para isso poderíamos usar somente diferentes motivações, buscando alterar a forma de narrar, mas vamos provocar mudanças no espaço que interfiram na narrativa.
Vamos centrar em duas interferências principais: em uma delas vamos alterar a luz do ambiente, o que poderá ser feito com um abajur que diminua a claridade ou com um equipamento usado em festas que projete diferentes luzes no espaço.
A segunda interferência será com o som, colocando músicas ou ruídos que interfiram na narrativa.
É muito importante fazer uma roda de conversa ao final e escutar o que os participantes tem a dizer sobre como as interferências no espaço alteraram a narrativa, tanto na condição de narradores, como de quem escuta.
Assisti a montagem de “Escola de Mulheres” escrita por Molière no teatro Polytheama, em uma direção de Clara Carvalho.
No Instagram da diretora, onde você pode saber mais sobre o espetáculo e as próximas apresentações, podemos encontrar o seguinte texto sobre a peça:
“Arnolfo sempre fora o terror dos maridos traídos de Paris, porém decide casar-se. Para ele, a pior coisa que pode lhe acontecer é um dia ser traído. Por isso, educa a jovem Inês para que se torne a esposa “ideal”.
Vivendo num convento desde os quatro anos de idade, Arnolfo garantiu que criassem a jovem na mais absoluta ignorância.
Assim, ao sair do convento, Inês seria a mulher perfeita para ele: burra, obediente e honesta.
No entanto, mesmo ele tendo conseguido moldar a personalidade da jovem da forma como sempre desejou não significa que a vida tomaria o mesmo rumo que ele estava imaginando, afinal, certos acontecimentos são impremeditáveis.
Como em muitas das peças de Molière, as personagens femininas são perspicazes, inteligentes e descobrem como se empoderar mesmo numa circunstância a princípio desfavorável o que torna o plano de Arnolfo muito difícil de implementar.
Num gesto de transgressão ao patriarcado e ao conservadorismo, Molière (1622 – 1673) traz à tona, com muita ironia, leveza e elegância, a sagacidade feminina em Escola de Mulheres.”
O texto é bom demais, o que explica o fato de um autor que viveu há 400 anos continuar sendo lido e suas peças serem montadas. É divertido e leve!
Eu gostei da montagem! Os atores são bons, existe uma dinâmica, um ritmo que faz com que a gente permaneça envolvido todo o tempo.
O cenário e a iluminação têm a qualidade de estarem em harmonia, possibilitam boas soluções e não roubam a cena. O figurino tem a qualidade de fazer referências à época, mas trazer elementos atuais que nos aproximam da trama.
Não sei se gosto da solução escolhida para a personagem da Inês, acho um pouco sem vitalidade, o que pode ser uma referência a maneira pela qual ela vai se apoderando da situação, discreta, mas certeira.
Os dois personagens masculinos centrais são muito bem interpretados. Não há dúvida de que vale seu tempo!
Ao entrar no teatro as duas atrizes, Elis Bráz e Victória Camargo, já estavam em cena, uma delas cantando, um canto e uma voz que ocupava o espaço. Nessa posição que estavam permaneceram, quase sem nenhum deslocamento durante todo o espetáculo. Parece estranho, né? E é mesmo, causa um estranhamento, mas é bom.
Passei por diferentes sensações no decorrer de toda a apresentação e não tenho dúvida de que o texto, os diálogos, os confrontos entre as personagens, que são de uma terra longínqua, são também nossos.
São de qualquer mulher, seja pelas violências sofridas com mais ou menos intensidade, ou seja pelo medo que carregamos com relação aos filhos e filhas desde que eles passam a existir nas nossas vidas. Mas são também dos homens, de qualquer pessoa que viva esse mundo cheio de conflitos que se renovam em uma dificuldade de diálogo que se renova em todas as épocas.
O texto e todo o contexto que ele apresenta dão margem a muitas conversas, mas o que mais me encantou foi a proposta de encenação e o trabalho das atrizes. Sou alguém que gosta de movimento e uma peça com tão pouco deslocamento poderia significar falta de movimento. Mas não!
O movimento se vê nos detalhes, na tensão que muda de intensidade e se retrata nas muitas expressões que vão traduzindo o texto dito de forma intensa, com a qualidade dos tons que apresentam inúmeras gamas. É encantador ver o que cada uma das atrizes consegue expressar somente com seu corpo, seu rosto, sua voz. Para quem gosta de ver uma boa atriz em cena, nesta peça você vai se deliciar.
Termino esse texto com uma citação do Léo Lama, retirada de seu Instagram, no qual ele pondera sobre a importância da imaginação e o papel do teatro para que ela seja ativada.
“TEATRO COMO FORMA DE PRESENÇA HUMANA. O discernimento é pauta essencial para a educação. Saber discernir entre o que é construtivo e o que é destrutivo é condição básica para um bom ensino. Em contato com exemplos edificantes ou com jornadas trágicas que possam nos sensibilizar, muito mais do que com os dogmas, as lições de moral, os sermões, podemos aprender melhor, sem didatismo. Assim o teatro se insere. A arte traz reflexão, sensibilização, abre porta para a criatividade. E toda criação vocacionada muda o mundo. O teatro é a arte da presença humana e da escuta, em tempos de virtualidade exacerbada e excessivo bombardeio visual. A verdadeira arte ativa a imaginação dentro de cada um de nós, criando interação e presença, sem que recebamos tudo pronto como uma tirania estética de passividade. O teatro é um curativo, uma necessidade. Penso.”
Fique de olho e não perca quando estiver em cartaz na tua cidade!
Texto e direção: Leo Lama
Assistência de direção: Amanda Mantovani
Produção: Aline Volpi
Elenco: Elis Bráz e Victória Camargo
Foto: Leo Lama
Esta proposta busca explorar a flexibilidade corporal, fazendo com que cada parte do corpo vá ficando cada vez mais flexível e menos tensa, chegando ao ponto de um relaxamento completo.
A proposta inicia com o grupo caminhando e a cada momento da caminhada, o professor dá um comando de que uma parte do corpo virou uma gelatina. Neste primeiro momento espera-se que as pessoas tenham cada vez mais dificuldade de caminhar, conforme as partes do corpo vão sendo nomeadas.
Aos poucos será impossível seguir caminhando e cada um terá que deitar no chão, porém mesmo deitados será possível seguir nomeando as partes do corpo para que possam relaxar ainda mais.
No decorrer desta proposta é interessante falar partes isoladas e detalhadas, como por exemplo: o dedo anular da mão esquerda, as costelas do lado direito, o queixo, etc.. Ao falarmos as diferentes partes do corpo permitimos que cada um se torne mais consciente de cada uma delas e busque movimentar somente esta parte, permitindo um maior domínio corporal.
A proposta pode terminar com todos relaxados no chão ou depois de um tempo de relaxamento, as partes podem ser nomeadas para serem revigoradas, até que todos voltem a caminhar.
Esta proposta pode ser feita com maior detalhamento no momento de relaxar ou o contrário. Das duas maneiras será possibilitado a consciência corporal.
Consuelo de Castro escreveu esta peça em 1969, há mais de 50 anos e a distância que nos separa do momento da escrita pode nos fazer pensar se é um texto que permanece atual, se vale a pena ser lido ou não.
A peça apresenta um casal, em três atos e não há dúvida de que parte dos conflitos apresentados não teriam as mesmas características, ao menos para grande parte das pessoas que vivem atualmente no Brasil e em boa parte do mundo.
A ideia de casamento foi questionada de lá para cá, o divórcio virou fato, ainda que tenha sido somente em 1977 sua aprovação, atualmente ninguém comenta de forma disfarçada o fato de uma mulher ser desquitada ou separada, como acontecia na década de 70.
Apesar das mudanças, muita coisa continua atual: um relacionamento desigual, o homem muito mais velho que a mulher, um ciúme possessivo e o medo da perda doentio.
Mas para além do que a peça aborda, o que encanta é a intensidade das cenas, a dramaticidade envolvente.
Yan Michalski na Pequena enciclopédia do teatro brasileiro contemporâneo, fala sobre a autora:
“Representante destacada da brilhante geração de dramaturgos surgida sob a ditadura, Consuelo de Castro é, entre os autores dessa geração, talvez a que possui o corpo de obra mais volumoso e diversificado. Em comum com os outros, ela tem o sentimento de inconformismo e indignação que perpassa tudo que ela escreve. O que a distingue dos outros é a sua excepcionalmente visceral noção de teatralidade, um diálogo notavelmente colorido, que ela cria com uma espantosa espontaneidade, e uma inquietação que a faz partir sempre em busca de novos caminhos”.
Se ainda não te convenci a ler, leia o pedaço de uma cena e veja se a peça te convence:
ÀFLORDAPELE
CONSUELO DE CASTRO
CENÁRIO
Sala única de um apartamento. Móveis modernos e simples. Há uma aparência de completo desleixo. Quadros fora do lugar, garrafas empilhadas no chão, etc. Uma estante de livros. Uma vitrola. Acima da estante aglomeram-se posters coloridos, uma bandeira preta com os dizeres: “Seja realista; peça o impossível”. À direita, um sofá-cama aberto, com lençóis em desalinho. No centro do ambiente, uma mesa e duas cadeiras. Sobre a mesa há uma máquina de escrever, cinzeiros, jornais, livros, copos, uma caveira, tudo na mais perfeita desordem, À esquerda, um armário cheio de roupas de uso próprio e roupas de cena.
PERSONAGENS
VERÔNICA: A aluna. Vinte e um anos. Nostalgia da ordem.
MARCELO: O professor. Mais ou menos quarenta e três anos. Desespero da ordem.
PRIMEIRO ATO
(Penumbra – Verônica está só no palco, Veste um traje longo, esvoaçante e branco, seus cabelos estão soltos e cheios de flores. É uma figura muito delicada. Anda de um lado para outro, lentamente. Sua expressão é de loucura suave. Traz nas mãos um alaúde, o qual toca desafinadamente. Canta com voz rouca uma canção sem melodia: Canção de Ofélia, namorada de Hamlet, cena V, ato II – Hamlet).
VERÔNICA (Entoando) – Nunca mais o veremos? Não mais voltará? Sumiu deste mundo, Baixai para o fundo, Que ele não voltará.
(Ela continua repetindo alucinadamente estas frases. Desafinando com o alaúde. Às vezes rodopia leve, como fantasma)
Sumiu deste mundo, Não mais voltará.
(Ouve-se um ruído de motor. Um carro estaciona, Ela para, assustada, acende a luz rapidamente, rói as unhas. Está apavorada com a chegada de Marcelo. Olha-se no espelho, ajeita as flores no cabelo. Faz uma careta sensual, como uma menina treinando uma pose sexy. Os passos vão se tornando próximos, ela morde os lábios).
MARCELO: (Entrando bruscamente) Oi… (Olha o traje) Ofélia de novo? (Ela assente com a cabeça. Está muito agitada e parece uma menina envergonhada que esconde alguma coisa. Corre a beijá-lo no rosto. Ele é frio e não retribui ao beijo. Ela finge não notar a indiferença dele. Rodopia suavemente e pega o alaúde).
VERÔNICA: Estou bonita de Ofélia?
MARCELO: (Balança a cabeça. Continua com ar preocupado e indiferente). Mais ou menos…
VERÔNICA: Alguma coisa contra Ofélia, Cavalheiro? (Gentil suave).
MARCELO: Contra Ofélia? Não. (Ele deposita a capa e o guarda- chuva sobre a mesa. Parece prestes a dizer alguma coisa de muito importante. Olha para ela, que continua fazendo gestos lentos, imitando uma donzela antiga, graciosamente). Eu não vinha aqui hoje. Mas eu precisava falar com você. (Ao ouvir isto ela para com a brincadeira. Vê-se que está com medo. Rói as unhas). Suponho que a senhorita já saiba… já saiba do que se trata. Não é, Dona Verônica? (Ele ironiza e sorri, ainda muito curioso; Ela assente com a cabeça jogando os longos cabelos para frente).
VERÔNICA: (Tentando desviar o assunto de que ele ameaça falar) Depois, tá? Depois você fala, bronqueia, tudo o que quiser. (Rodopia) Fala a verdade. Não fico linda de Ofélia?
MARCELO: (Sentando-se na cama vagarosamente) Se o Shakespeare te visse… tinha um enfarte. (Som, levemente irônico, mas com um ar paternal). Você parece mais a avó da Ofélia. Está estragando a personagem. (Acende um cigarro. Ela continua rodopiando, leve e infantil).
VERÔNICA: (Recitando suavemente) Que nobre inteligência assim perdida! O olho do cortesão, a língua e o braço do sábio e do guerreiro, a mais florida esperança do Estado… O próprio exemplo de educação, o espelho da elegância…
MARCELO: (Interrompendo) Quantos litros de uísque você entornou desde o (Ironiza) “ocorrido”?
VERÔNICA: (Parando de recitar) Eu? (Finge espanto) Eu?!
MARCELO: Você sim. Quantos litros de uísque? Vamos lá…
VERÔNICA: Nenhum… (Ri) Nenhum, imagine. Por que você pergunta isto?
MARCELO: Basta olhar para suas olheiras…
VERÔNICA: (Zombeteira ainda; olhando-se no espelho) Não estou vendo olheira nenhuma… (Olha novamente. Graciosa e irônica, começa a examinar detidamente os olhos). Nenhuma mesmo. Engraçado! (Aproxima- se dele) Onde você viu olheiras em mim? Meu Marcelo… Está vendo coisa… (Tenta seduzi-lo, aproximando o rosto bem próximo ao dele),
MARCELO: É só lavar essa maquiagem pesada e você enxerga. Lava a cara e depois vem sentar aqui, direitinho, que eu preciso conversar sério com você. Certo?
VERÔNICA: (Olhando-o assustada. Morde os lábios. Senta-se ao lado dele) Você… não vai brigar comigo, vai?
MARCELO: Não. Vou apenas colocar tudo em pratos limpos.
VERÔNICA: (Levanta-se, andando de um lado para outro, Agitada) Sei que você está uma onça. (Ri) Eu sei… Mas olha… eu… eu estava fora de mim. Completamente fora de mim…
MARCELO: Isto não justifica nada, menina.
VERÔNICA: Eu não sabia direito o que estava fazendo.
MARCELO: Você NUNCA sabe direito o que está fazendo. VERÔNICA: Aquele dia principalmente…
MARCELO: Que é que te deu na telha de…
VERÔNICA: Não sei, não me pergunte… (Tapa o rosto, teatral). Não quero falar nisto. Eu já disse. Eu estava fora de mim.